Actualidades en Psicología, 36 (132), julio-diciembre, 2021, 58-71 // DOI: 10.15517/ap.v36i132.43532
ISSN 2215-3535
Informais, empreendedores ou precarizados? A trajetória de trabalhadores de comida de rua
Informal, Entrepreneurial, or Precarious Work? The Life Trajectory of Street Food Micro-Business Owners
Eveline Nogueira Pinheiro de Oliveira 1
https://orcid.org/0000-0002-9702-0352
Cássio Adriano Braz de Aquino 2
https://orcid.org/0000-0001-8651-1634
Janequeli Simão Nascimento 3
https://orcid.org/0000-0001-8196-3009
1,2,3 Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Ceará, Brasil
1 nogueiraeveline@hotmail.com 2 brazdeaquino@gmail.com 3 kelly.ufc@gmail.com
Recebido: 18 de agosto del 2020. Aceitado: 21 de abril del 2022.
Resumo. Objetivo. Esta pesquisa objetivou a compreensão e a análise da relação entre informalidade, empreendedorismo e precarização de trabalhadores de pequeno porte envolvidos no segmento de comida de rua na cidade de Fortaleza, Estado do Ceará, Brasil. Método. Foram entrevistados, por meio de um roteiro semiestruturado, 10 trabalhadores de comida de rua da cidade de Fortaleza, com idade entre 25 e 73 anos, dentre vendedores de cachorro-quente, milho, tapioca, pastel e outros tipos de produtos alimentícios. Resultados. Uma característica parece surgir como primordial para o trabalhador de comida de rua: ser empreendedor. A falta de perspectiva laboral faz com que os trabalhadores busquem por uma salvação e assim são veiculadas as ideias empreendedoras, focados na informalidade, mas que terminam por reforçar os processos de precarização.
Palavras-chave. Trabalho, empreendedorismo, economia informal
Abstract. Objective. This research aimed to understand and analyze the entrepreneurial activity of formal and informal micro-business owners involved in the street food segment in the city of Fortaleza, State of Ceará / Brazil. Method. 10 street food micro-business owners from the city of Fortaleza, aged between 25 and 73 years old, among them sellers of hot dogs, corn, tapioca, pastries, and other types of food products, were interviewed, using semi-structured interviews. Results. One characteristic that becomes paramount for contemporary street food micro-business owners is that of being an entrepreneur. The lack of a career perspective in the formal job market makes the micro-business owners regard the street food segment as a kind of salvation from that context, and convey entrepreneurial ideas focused on informality, which ultimately reinforce precariousness processes.
Keywords. Work, entrepreneurship, informal economy
O cenário laboral brasileiro, a exemplo de quase todo o mundo, vive inúmeras transformações que repercutem na vida daqueles que dependem diretamente do trabalho que realizam para sua subsistência. Este texto deriva de uma pesquisa empírica que busca dar visibilidade aos impactos de uma dinâmica, muitas vezes abstrata, na vida de determinados trabalhadores, compreendendo as diversas realidades laborais que se constroem a partir das transformações operadas no mundo do trabalho.
As noções de informalidade, precarização, perda de direitos e garantias, e adoecimento mental perpassam atuais estudos sobre as dinâmicas de vida dos trabalhadores. Nesse cenário, assistimos a uma exaltação do que poderíamos nomear de “espírito empreendedor”. Cada vez mais fica denotada a consolidação da doutrina neoliberal que convoca todos a assumirem uma postura empreendedora, a despeito da inserção formal ou, o que é mais comum, na esfera da informalidade (Casara, 2021). Nesse sentido, muitos trabalhadores têm se deslocado para trabalhos por conta própria, principalmente de micro e pequeno porte, normalmente mais voláteis e imprevisíveis.
Aliado a esse processo, é notável também a expansão e reconfiguração de um modelo de negócios próprio desse movimento: a comida de rua. Embora não seja uma atividade de história recente no Brasil, esse modelo de comércio começou a se complexificar com a inserção de novos tipos de trabalhadores a partir da primeira década do século XXI. Com a globalização e a flexibilização, e fomentado pela própria dinâmica urbana, muitos consumidores hoje buscam a alimentação vendida por ambulantes, barracas, trailers e food trucks. Portanto, dentre os tantos trabalhadores que se inserem em processos de informalidade e precarização, nossa investigação se situa em torno daqueles que têm a comida de rua como atividade laboral.
A informalidade e a atividade empreendedora, sem excluir a vinculação de ambas, surgem como alternativas possíveis ao concorrido e reduzido mercado de trabalho formal, tal como apontado por Coelho-Lima (2016). A questão que se coloca é se a ampliação da informalidade é uma escolha deliberada do trabalhador ou uma imposição forçosa visando à construção de um modelo naturalizado de inserção laboral.
Numa tentativa de compreensão dessa tendência que se firma no horizonte laboral, parece importante acessarmos a história de vida laboral, por meio de derivações advindas de situações de desemprego, aposentadoria, mudanças e sofrimentos no trabalho que têm levado a um grande contingente de trabalhadores a optar por esse modelo de informalidade e que promovem fraturas que são compreendidas como rupturas das trajetórias de vida no trabalho (Carreteiro, 2017).
O texto aqui apresentado é recorte de uma pesquisa que analisou a atividade empreendedora de trabalhadores de pequeno porte do segmento de comida de rua na cidade de Fortaleza, Ceará, Brasil. O foco central abordado são as características do empreendedorismo que acabam se aproximando do trabalho caracteristicamente precário, em trajetórias de vida marcadas pela informalidade, advindas de rupturas ou da tendência a configura-las como uma norma de inserção no universo laboral.
A trajetória laboral, que endossamos como modo privilegiado de investigação aqui tratada, está relacionada ao conjunto da vida profissional –escolhas, oportunidades, impedimentos (Bendassolli, 2009) – que viabilizam a construção do ser trabalhador no território específico da comida de rua. Ademais, não sendo aqui nosso foco de discussão, muito embora seja importante situar, produzimos nossas discussões a partir de um viés social e crítico do trabalho, tendo como embasamento teórico a Psicologia Social do Trabalho (PST), no tocante às reflexões que envolvem as condições de trabalho, as experiências dos trabalhadores e a precarização do trabalho.
É necessário considerar as grandes mudanças que cercaram o mundo do trabalho nas últimas décadas. No Brasil, a reestruturação produtiva teve como consequência intenso processo de terceirização e subcontratação, aumentando o contingente de trabalho informal sob discursos de melhores perspectivas de carreira e de incentivo à multifuncionalidade e à polivalência (Antunes, 2018).
Nas últimas décadas do século XX, a evolução tecnológica e a mundialização impulsionaram competitividade entre mercados e concorrência entre empresas. O objetivo de mercado é o lucro por meio de mão de obra barata, incentivos fiscais, fechamento de unidades fabris e enxugamento de postos de trabalho. Proliferaram, a partir de então, novas formas desregulamentadas de trabalho, como a terceirização e a subcontratação, frente à redução drástica dos níveis de emprego (Antunes, 2018).
De acordo com Aquino (2005), “a denominada crise estrutural que se instalou nos países centrais a partir da década de 1970, atribuiu à precariedade um lugar de destaque no delineamento das discussões sobre o trabalho” (p. 2). Por precariedade, compreende-se o fenômeno; e por precarização, o processo em que direitos e vínculos laborais são fragilizados, constituindo um quadro que envolve alta rotatividade, baixos salários, jornadas excessivas e falta de estabilidade.
Nesse cenário, muitos trabalhadores vivem a inadequação às exigências organizacionais, condicionados a participar de um mercado à margem da formalidade: trabalhos temporários, subcontratação, intensificação de longas jornadas, trabalhos part-time, etc. (Antunes, 2018). Para Aquino e Moita (2018), o processo de precarização, sob o nome de flexibilização, se instala através de vínculos laborais que vulneram garantias e direitos básicos dos trabalhadores.
Na esteira dos fenômenos, compreende-se aqui a informalidade como um processo que caracteriza a desregulamentação, o assalariamento sem carteira, o trabalho autônomo, o trabalho temporário, enfim, as modalidades de trabalho que não se enquadram na formalidade, que fogem às regulamentações. O uso da expressão trabalho informal tem suas origens nos estudos realizados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) no âmbito do Programa Mundial de Emprego de 1972. Ela aparece, de forma particular, nos relatórios a respeito das condições de trabalho em Gana e Quênia, na África (Organização Internacional do Trabalho, 1972).
O que entendemos por informalidade engloba os trabalhos “não reconhecidos ou protegidos por leis ou regulamentações e tanto os empregados quanto os empregadores são caracterizados por um alto grau de vulnerabilidade” (Feijó et al., 2009, p. 333). Essa compreensão sobre a informalidade atende a um interesse pontual, visto ser importante denotarmos que é um tema complexo que mereceria um artigo explicativo, mas que, em função do limite de um artigo, nos deixa impossibilitados de aprofundar essa análise.
Embora não haja consenso sobre a definição precisa dos termos informalidade, setor informal e economia informal, as modalidades de trabalho informal se diversificam e se expandem. Desse modo, “as atividades não formalizadas, não regulamentadas e não protegidas com os mesmos benefícios legais conquistados pelos trabalhadores formais se multiplicaram, notadamente, nos países onde o emprego formal é ou se tornou escasso” (Santos et al., 2014, p. 326). Nesse cenário, a economia informal brasileira é responsável por absorver grande contingente de trabalhadores excluídos do mercado formal, distante dos padrões de proteção social.
Os impactos desse processo na construção subjetiva dos trabalhadores são diversos, como: a falta de autonomia, embutida, de forma controversa, sob um falso controle sobre seu trabalho e sobre as condições que o cercam; um processo de autoculpabilização, reforçado pelo forte individualismo; e o isolamento social e perda de vínculos, corroborando para novos quadros de doenças relacionadas ao trabalho.
Dentre essas formas alternativas de trabalho, acreditamos que seja possível destacar o empreendedorismo e, como consequência, o surgimento de uma enormidade de pequenos negócios próprios, geridos por indivíduos que deixaram um emprego formal ou que, por causa do desemprego, abriram um negócio. Assim, esses pequenos empresários, juntamente com trabalhadores assalariados e não assalariados, irão compor a nova face da classe trabalhadora, mais complexificada, fragmentada e heterogênea em relação àquela encontrada em passado recente (Antunes, 2018).
Como apontam Damião et al. (2013), no contexto brasileiro, “a Lei Complementar 128/2008 do ‘Empreendedor Individual’ foi criada com o propósito de simplificar o processo de legalização de empreendimentos e estimular a formalização daqueles que atuam na informalidade” (p. 198). No entanto, a criação desses negócios se relaciona com a ausência de trabalho formalizado em que “o ‘empreendedor’, na verdade um trabalhador comum, se vê obrigado a empregar o seu labor numa atividade que lhe garanta o próprio sustento” (Damião et al., 2013, p. 198).
É fundamental ter a compreensão das construções e desconstruções dos discursos empreendedores ao longo da história, já que certos argumentos acabam por naturalizar a concepção de empreendedor que temos atualmente e, nesse sentido, corremos o risco de adotar um modelo anti-histórico, acrítico e determinista. Hoje, há um resgaste da figura do empreendedor como garantia de ordem econômica e social. Esse resgate acontece, inclusive, quando se opta, de forma intencional, por nomear o trabalhador como empreendedor, com todo o peso que esse rótulo possa trazer.
Na perspectiva do capital, isso significa diminuição dos custos trabalhistas por meio da contratação de serviço temporário e flexível a partir da prestação de serviços de empreendedores. Na perspectiva do sujeito que desenvolve a atividade, isso significa menos direitos e garantias, mais riscos, menos tempo livre, mais trabalho, o que constitui um quadro sujeito à precarização laboral.
O empreendedorismo é divulgado como a atividade realizada por sujeitos criativos e corajosos, cujo sucesso depende apenas de seu esforço, muito embora o espectro abrangido por essa denominação vá de um coletor de materiais recicláveis a um profissional autônomo de alta tecnologia. É um discurso ideológico pautado na perspectiva da individuação, do empoderamento e da ideia de que o indivíduo é dotado de poder capaz de levá-lo a realizar tudo o que pretende, bastando vontade e persistência, sendo ele responsável por tudo, inclusive pelo seu possível fracasso.
O empreendedor, o trabalhador flexível e mesmo o cooperado tornam-se figuras representativas do “novo” espírito do capitalismo. Cabe ao trabalhador internalizar os novos requisitos impostos pelo mercado. A realização pessoal e profissional e mesmo sua sobrevivência pessoal, cada vez mais depende disso. O futuro é incerto e manter-se no mercado exige grandes investimentos pessoais. (Lima, 2010, p. 189)
Castel (2005) aponta que esse discurso da responsabilização se associa à crescente individualização das relações de trabalho, com o discurso de total controle sobre si e sobre seu negócio.
Retomando a ideia de precarização, o processo de levar a pensar-se como empreendedor oculta o sentido precarizado da atividade. O próprio fato de se tornar um empreendedor já o inclui na perspectiva do trabalho precário, já que ele não usufrui de nenhum dos diretos assegurados para o trabalhador assalariado. Aqui reside a vulnerabilização da vinculação trabalhista, para além da atividade em si, que pode ser a do ambulante de comida de rua até o dono de um food truck.
Isso se constitui processo de precarização do trabalho e do sujeito também, na medida em que atinge, em maior ou menor grau, rápida ou lentamente, outras esferas de sua vida, ou seja, na medida em que esse trabalho toma lugar tão fundamental que invade todo o seu tempo, é onde ele investe toda sua subjetividade. Assim, “a ‘invasão’ permanente do trabalho na vida dos indivíduos, para além do espaço laboral tradicional, termina por delinear um território que faz da precarização um fenômeno decisivo na produção subjetiva do trabalhador contemporâneo” (Aquino, 2008, p. 170).
O sujeito empreendedor quase sempre é um trabalhador descoberto de garantias e direitos trabalhistas, que vive no risco, na incerteza e na pressão que isso causa, já que “as novas condições de mercado obrigam grandes números de pessoas a assumir riscos, mesmo sabendo os jogadores que as possibilidades de retorno são tênues” (Sennett, 2011, p. 104). É interessante sair do foco no indivíduo e ver como o contexto social, político e econômico produz essa pressão para tornar os trabalhadores empreendedores, mesmo que em condições de trabalho, muitas vezes, indignas.
Tal como apontado por Coelho-Lima (2016), “a saída do pauperismo pelo empreendedorismo constitui-se em uma falácia: por um lado, permanece a submissão do trabalhador a condições aviltantes de trabalho e, por outro, reduz a pressão pela ampliação de vagas com melhores condições de trabalho” (p. 261). Essas novas formas de trabalho se configuram como maneiras ocultas de trabalho precarizado, “de trabalho autônomo de última geração, que mascara a dura realidade da eliminação do ciclo produtivo. Na verdade, trata-se de uma nova marginalização social, e não de um novo empresariado” (Vasapollo, 2005, p. 384).
Tal como afirmam Damião et al. (2013), “o estímulo ao ‘empreendedor individual’ é ideológico economicamente, pois o indivíduo não tem formação técnica para desenvolver uma organização racional, não possui crédito em condições competitivas e o empreendimento não está associado às novas combinações schumpeterianas” (p. 198). Essas questões serão mais bem trabalhadas à frente, ao analisarmos a trajetória de alguns trabalhadores em um percurso de informalidade laboral.
A opção por investigar pequenos empreendedores decorre da preocupação com o elo mais vulnerável de uma cadeia complexa de processos. São aqueles trabalhadores de pequeno porte, agora rotulados empreendedores, que estão atrelados ao discurso neoliberal da individualidade e do esforço isolado, que trazem em sua realidade maiores dados de vulnerabilidade e, portanto, de aproximação com a precarização.
A comida de rua “ocupa papel expressivo na proliferação de estratégias de sobrevivência inseridas no mercado informal” (Dutra, 2012, p. 4). A globalização, a internacionalização da economia e a difusão de novos valores tempo/espaço influenciam as práticas alimentares (Diez Garcia, 2009), provocando mudanças no tradicional comércio de comida na rua: o que, anteriormente, eram apenas ambulantes e pequenas barracas de comida, foi tomado por várias categorias de pequenos negócios.
A alimentação acompanha o ritmo das transformações da esfera econômica e do mundo laboral. Sob uma perspectiva histórica, “no Brasil, a venda de comida nas ruas teria iniciado no Nordeste, a partir do século XVI, com a chegada das mulheres escravizadas, oriundas da África” (Gastal & Pertile, 2013, p. 4). A comida de rua se iniciou por uma parcela da população marginalizada, predominantemente pobre e com um recorte de gênero bem definido. A despeito de uma complexificação, com a inserção dos trailers e food trucks, esse perfil de comerciante ainda se mantém.
Em um momento anterior da história, a jornada laboral seguia os ritmos alimentares. Hoje, de maneira contrária, a alimentação está cada vez mais dependente dos horários impostos pelas atividades de trabalho e lazer, se tornando desestruturada (Contreras, 2009). Assim, “na atualidade e sob a lógica dos novos nomadismos e dos novos olhares à cultura, as comidas de rua tornaram-se, embora ainda às margens e num entre lugar, um grande negócio” (Gastal & Pertile, 2013, p. 5). A própria dinâmica urbana parece demandar a presença do comércio de comida nas ruas devido ao intenso trânsito de indivíduos à procura por alimentação rápida e barata.
No que se refere à sua conceitualização, a comida de rua, tradicionalmente, pode ser definida como alimentos e bebidas prontos para consumo ou preparados na hora e vendidos nas ruas e lugares públicos. “Nesse rol poderiam estar incluídos, no Brasil, os pipoqueiros, os vendedores de cachorros-quentes, algodão doce ou mesmo de sorvetes, que frequentam as ruas das cidades” (Pertile, 2013, p. 302).
A esse respeito, a resolução nº 216, de 15 de setembro de 2004, da Agência Nacional da Vigilância Sanitária (Ministério da Salúde do Brasil, 2004, Resolução RDC nº 216 de 15 de setembro de 2004), traz a descrição sobre o Regulamento Técnico de Boas Práticas para Serviços de Alimentação, incluindo os vendedores ambulantes de alimentos. Nas legislações mais recentes na cidade de Fortaleza, notamos a proliferação de novas categorias que costumam se confundir com a definição mais tradicional de comércio ambulante.
A presença do comércio ambulante, como forma de comércio e atividade econômica, indica alguns aspectos da conjunção de problemas urbanos contemporâneos, sobretudo, a pouca absorção do quantitativo da força de trabalho que, mediante a reestruturação produtiva, segrega trabalhadores por meio de funções profissionais marcadas cada vez mais pela qualificação e incorporação tecnológica. (Gonçalves, 2014, p. 130)
A venda de alimentação nas ruas abriga estratégias de sobrevivência frente à realidade laboral que vivemos. A perspectiva da informalidade e do trabalhador ambulante como principal vítima da crise econômica “tem cedido lugar a novas visões e expectativas em relação ao setor informal, como por exemplo, uma visão mais afinada ao liberalismo que visualiza neste trabalhador autônomo o empreendedor em potencial” (Dutra, 2012, p. 6). O trabalhador da comida de rua passa a ser menos estigmatizado como ambulante e classificado como empreendedor, e, portanto, o negócio passa a ser menos associado à alimentação suja, insalubre e ilegal.
A comida de rua ganha complexidade, ampliando o espectro de trabalhadores que vão dos pequenos ambulantes aos formalizados e grandes food trucks. O espaço da rua passa a ser dividido e concorrido por trabalhadores que guardam consideráveis diferenças entre si, formando um leque diversificado de características.
A presente investigação é um recorte de uma pesquisa qualitativa envolvendo 10 trabalhadores de comida de rua da cidade de Fortaleza, Ceará, Brasil. Esses trabalhadores foram entrevistados a partir de roteiros semiestruturados, e suas falas analisadas a partir das narrativas de história de vida no trabalho (Carreteiro, 2017). Trata-se de uma pesquisa empírica envolvendo empreendedorismo, comida de rua e precarização.
Participantes
Entendendo a amplitude dos tipos de trabalhadores nesse comércio, delimitamos um recorte: ambulantes e barracas de comida. Essa escolha, para os efeitos da presente investigação, decorre de algumas evidências apresentadas na literatura que apontam que o status desses empreendedores difere significativamente de empreendedores de outras dimensões, já que para os de menor porte “as chances de sucesso são mínimas ou atomizadas, sobretudo para os empreendedores de baixa renda, que somam mais e mais indivíduos, sobretudo em contexto de transformações na dinâmica do trabalho” (Maciel, 2014, p. 10).
Optamos por não restringir a algum modo de regulamentação, abrangendo a pesquisa desde os ambulantes e as barracas informais ou formalizados, fixos ou itinerantes, contanto que dentro da categoria de comida de rua (ver Tabela 1).
Nosso foco de análise aqui é o fato de a informalidade estar presente para além da atividade desenvolvida pelo trabalhador, permeando toda a vida. Mais do que uma ruptura, a informalidade é a conformação da história laboral desses sujeitos. Nesse sentido, foram entrevistados 10 trabalhadores com idades entre 25 e 73 anos, entre vendedores de cachorro-quente, milho, tapioca, pastel, etc. Para fins de publicação, foram utilizados nomes fictícios inspirados na obra O quinze de Rachel de Queiroz.
Instrumentos
Foram utilizados como instrumentos de pesquisa roteiros semi-estruturados de entrevista. Nestes roteiros, haviam perguntas centrais, fornecendo elementos para que o trabalhador discorresse com liberdade. Foram elaboradas perguntas englobando questões como: experiências de trabalho, atual conformação das atividades laborais, rotina e cotidiano de trabalho, percepções sobre trabalho informal e formal, perspectiva sobre futuro e aposentadoria, questões financeiras, entre outros pontos. Foram tópicos que pudessem dar conta de permitir uma análise da história laboral dos entrevistados (Carreteiro, 2017), por meio da narrativa desenvolvida por eles mesmos.
Procedimentos
Todos os procedimentos seguiram padrões exigidos pelo Comitê de Ética responsável pela aprovação da pesquisa. Em um momento inicial, foi realizada leitura breve do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, fornecendo todas as informações necessárias. Foram explicitados brevemente os objetivos da pesquisa, as questões de sigilo dos discursos e identidades e o modo como os relatos seriam manejados e analisados posteriormente. Todas as entrevistas foram gravadas, sob consentimento dos entrevistados, e posteriormente transcritas.
Para construção dos dados, optou-se pela entrevista semiestruturada, na qual o informante tem a possibilidade de discorrer sobre suas experiências a partir do foco principal proposto pelo pesquisador. As entrevistas, em sua maioria, ocorreram no próprio ambiente de trabalho dos entrevistados, no espaço da rua; enquanto outros preferiram marcá-las posteriormente, fora do horário de sua atividade.
Nesse processo, naturalmente, o quadro de amostragem se tornou saturado, ou seja, as informações trazidas pelos entrevistados foram se tornando repetitivas, até o ponto de não surgirem informações novas ao quadro de análise. Para os efeitos da presente pesquisa, isso é o que chamamos de ponto de saturação.
Análise de dados
Os dados construídos nessas entrevistas foram tratados pela análise das histórias de vida no trabalho (Carreteiro, 2017). Após a transcrição das entrevistas, utilizamos como fio condutor da análise o próprio discurso dos trabalhadores, de modo a construir uma narrativa de sua história de vida laboral. A partir da narrativa construída, pudemos analisar determinados pontos focais, como os processos de precarização do trabalho presentes em sua história laboral, os tipos e modalidades de atividades em que ele esteve envolvido, a atual conformação do trabalho em sua vida, perspectivas sobre trabalho formal e informal, dentre outros aspectos que possibilitam mergulhar nas nuances e descaminhos do trabalho na vida de um indivíduo.
Não sendo nosso objetivo explicitar aqui todas as narrativas de vida laboral em sua integralidade, nos propomos a tecer uma análise que busca utilizar como foco as questões de informalidade e precarização. Sendo, portanto, um recorte de uma pesquisa mais ampla, aqui discutiremos os aspectos relacionados ao trabalho informal e precário dentro das narrativas. Este pareceu ser um fio comum aos discursos de todos os trabalhadores e, portanto, optamos por dar ênfase nesta análise a este aspecto.
A captura dos trabalhadores pela teia que do cenário da informalidade é tecido fundamentalmente pelos fios do empreendedorismo e da precarização que, apesar de tratados como conceitos não intercambiáveis, se aproximam como constituintes da trajetória laboral da classe trabalhadora, principalmente aquela mais fragilizada.
Em pesquisa realizada em São Paulo, em 2015, com mais de 100 mulheres empreendedoras de diversos setores, os resultados apontam que há convergência em torno de 60% entre o Índice Geral de Precarização e o surgimento de micro e pequenas empreendedoras, seja de necessidade ou de oportunidade (Vasconcellos & Delboni, 2015). As motivações para empreender permitem enquadrar o empreendedor em duas categorias excludentes: empreendedores por necessidade e empreendedores por oportunidade. Os empreendedores por necessidade seriam aqueles que empreendem por não possuírem melhores alternativas de emprego, propondo-se criar um negócio que gere rendimentos, visando basicamente a sua subsistência e de seus familiares. Já os empreendedores por oportunidade seriam aqueles que empreendem mesmo possuindo alternativas concorrentes de emprego e renda GEM (2017).
Sobre a classificação oportunidade/necessidade, questionamos essa rotulação tão delimitada. A questão é: em meio ao cenário atual em que o trabalho no Brasil se encontra, é possível fazer essa divisão? A inclinação preponderante dentre os trabalhadores que decidem por trabalhar para si próprios seria a busca pela subsistência, traduzindo-se, de fato, em uma estratégia de sobrevivência, já que cada um se torna responsável pela sua própria inserção no mercado de trabalho, através de um auto emprego, se não for exagero falar, compulsório. Esse dado também é destacado em artigo publicado anteriormente, onde o foco era essa aproximação entre a precarização e o empreendedorismo (Oliveira et al., 2016).
A informalidade é o grande cenário do percurso laboral dos entrevistados. A relação entre a informalidade, o empreendedorismo e a precarização laboral é histórica e seus impactos se agravam com o alastrar dos últimos acontecimentos sociopolíticos no Brasil, tais como a aplicação da Reforma da Legislação Trabalhista e da Reforma da Previdência Social. É sob esse cenário que vai se construindo um percurso onde a vulnerabilização constitui a base da trajetória laboral derivada de rupturas com condições anteriormente favoráveis de vínculo de trabalho ou como caminho natural daqueles para quem a condição salarial nunca foi experimentada.
A história de vida laboral que emerge das narrativas aqui construídas, inicialmente individuais, se amplia quando lançamos novas lentes de análise a ponto de compor traços coletivos de um grupo social (trabalhadores de comida de rua). No caso específico da investigação realizada, a metodologia foi constituída a partir da escuta e do esforço em interligar informalidade, empreendedorismo e precarização.
Sobre a formalização do negócio próprio, sete de nossos entrevistados se declararam informais, sendo o restante categorizados como Microempreendedor Individual (MEI). Segundo o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (2014), MEI é a pessoa que trabalha por conta própria e que se legaliza como pequeno empresário. Para ser MEI, é necessário faturar no máximo R$ 81.000,00 por ano (valor de 2020); possuir um único estabelecimento; não participar de outra empresa como titular, sócio ou administrador; e não contratar mais de um empregado.
A expansão da informalidade está vinculada às mudanças trazidas pelas reformulações econômicas e políticas desde a década de 1970. Hoje, o que podemos notar é uma mudança de perspectiva sobre a informalidade. Antes vista como forma de degradação do trabalhador, agora é encarada como forma de desonerar o Estado da proteção social, assumida como possibilidade concebível. Isso se agrava com os esforços de institucionalização dos trabalhos informais e precários no Brasil (Coelho-Lima, 2016), como “uma espécie de des-demonização da informalidade, de sinônimo de subdesenvolvimento para sinônimo de desregulamentação, flexibilidade e mesmo de empreendedorismo” (Lima, 2010, p. 174).
Essa mudança nos faz retomar o anteriormente dito acerca da transformação de perspectiva sobre o próprio trabalhador informal ambulante, agora considerado empreendedor/dono do próprio negócio. Isso remete a uma naturalização do precário na atividade, já que o fato de ser informal e não dispor de direitos e garantias sociotrabalhistas não é encarado como precariedade, mas como uma particularidade do fazer empreendedor, tal como relatado em diversos momentos pelos entrevistados, quando nos dizem que se sentem orgulhosos sobre a autonomia de seus trabalhos.
Outro ponto de análise são as relações que envolvem o nível de escolaridade dos trabalhadores investigados. Nenhum deles tinha sequer o Ensino Médio concluído, o que nos leva a uma necessidade de pontuar sobre esse dado significativo quando falamos de informalidade e precarização, e, sobretudo, quando falamos sobre empreendedorismo. O relatório Global Entrepreneurship Monitor de 2016 (GEM, 2017) destaca que a pouca ou nenhuma qualificação profissional e educacional daqueles que desempenham uma atividade por conta própria caracteriza grande parte dos negócios informais e é uma das dificuldades de se empreender no Brasil.
É necessário considerar também que a precarização laboral historicamente atingiu de forma mais intensa a massa de trabalhadores marginalizados que compreende aqueles com baixa escolaridade e pouca renda, já que esse cenário viabiliza a submissão a trabalhos com condições ainda mais precárias.
O trabalho informal esteve presente durante a maior parte da vida laboral desses trabalhadores. Isso é ilustrado pela fala de Lourdinha, que nos conta, em resumo, seu percurso de vida laboral anterior à atividade que desenvolve hoje.
Eu comecei com 17 anos de doméstica. Aí, vim pra casa de uma tia. Eu morava na casa de uma tia. Era um pessoal rico né, aí era pior que uma empregada. Aí, de doméstica eu comecei a trabalhar em casa de família até os meus 27 anos. De 27 eu comecei a trabalhar de costura, de acabamenteira [sic], costurando só o acabamento, né. Depois de costura eu passei a trabalhar na fábrica [...], aí trabalhei de serviços gerais, que era numa firma, mas foi pouco tempo. Depois disso aí, voltei pra aprender a costurar, aí comecei a costurar. Aí, tu sabe que a gente trabalhando de costureira, tipo assim, de produção, tem época que para, principalmente em fevereiro pra março. É a época que para todas as costuras. Se for firma, bota as pessoas pra tirar férias nessa época, justamente porque não tem correria nas costuras. E, se for de produção, quem for de produção passa um período apertado, como eu já passei, né. Foi aí onde eu comecei a trabalhar vendendo churrasquinho aqui na frente da porta, depois comecei a vender tapioca no meio da rua. Vendi de tudo, dindim.... Tudo eu vendia, sabe? (Lourdinha, 49 anos, comunicação pessoal)
A fala de Lourdinha explicita que, no caso dos trabalhadores aqui entrevistados, a motivação para empreender estaria relacionada à necessidade de obtenção de renda mais do que a uma oportunidade ou desejo de realizar um negócio próprio. Isso nos permite formar concepções sobre o acesso à informalidade e à venda de comida como meio mais plausível e imediato de obtenção de uma renda que garanta subsistência, e é nesse sentido também que os trabalhadores, especialmente de uma classe menos abastada, se veem impelidos a desenvolver tais “habilidades empreendedoras”.
Além do ilustrado anteriormente, outros desses trabalhadores sequer tiveram em suas Carteiras de Trabalho e Previdência Social (CTPS) algum registro de trabalho formal, como ilustrado por Dona Inácia:
Ah, eu já trabalhei... A única coisa que eu ainda não fiz foi roubar, me prostituir e vender droga. Mas já vendi produto, [...] vendi chinela, vendi confecção, vendi aqueles kits de cozinha, de colcha de cama. A menina me fornecia produto pra eu vender nas casas. Já vendi tudo quanto foi de produto. Já montei comércio num sei quantas vezes. Sempre tive um boteco. Tudo pra eu me manter, porque eu nunca dependi do meu marido. Eu dependia dele pra comer e pra sombra da casa, mas pra me vestir e calçar era eu, era suado. (Dona Inácia, 62 anos, comunicação pessoal)
Quando questionada sobre um possível desejo de trabalhar formalmente, Dona Inácia relata que ela não possui nem meios para fazer essa reflexão, já que nunca sequer acessou a experiência do trabalho formal para fazer algum comparativo. A naturalização do precário talvez se dê de forma mais profunda nesse caso em que o trabalhador nunca foi amparado pela legislação trabalhista e teve acesso apenas a uma forma de experienciar a inserção laboral.
Tudo bem que carteira assinada é bom porque você tem uma coisa garantida. Você trabalha 1 ano ou 2, e, quando você sair, você tem seu pezinho de meia [sic]. Mas, da mesma forma que eu penso em carteira assinada, eu penso no meu jeito. Mas, assim, se eu nunca recebi nem um salário, como é que eu vou sentir falta de receber um 13° salário? Eu nunca soube o que é isso. Pra mim tanto faz eu trabalhar de carteira assinada como eu trabalhar por conta própria, porque se eu tivesse condições de ganhar bem fazendo o que eu faço, eu poderia juntar dinheiro todo dia e no final do ano eu tinha meu salário garantido. (Dona Inácia, 62 anos, comunicação pessoal)
A fala de Luís Bezerra também nos serve de ilustração para compreender como a informalidade permeou a vida laboral desses sujeitos.
Eu cheguei aqui em Fortaleza em 82, né, ainda de menor, adolescente. Aí, trabalhei de flanelinha, entendeu? Em frente a um mercadinho. Aí, em seguida o gerente perguntou se eu queria trabalhar né, de tanto eu insistir, empacotando. Aí, eu: “Quero, é claro”. Aí, eu fui trabalhar de empacotador no mercantil, entendeu? E eu fiquei até os 18 anos. (Luís Bezerra, 50 anos, comunicação pessoal)
Outro ponto que gostaríamos de evidenciar é um dado que foi unânime entre todos os entrevistados que diz respeito à rede familiar que constrói a rede socioprodutiva em torno da atividade realizada, fundamental para a economia informal. Todos contam, de alguma forma e em algum momento da produção ou venda dos alimentos, com algum familiar que lhes fornece um suporte. O conceito de Rede SocioProdutiva (RSP) estaria em torno de “relações de confiança que uma pessoa-foco cria com outros sujeitos tendo em vista empreender uma atividade que sozinha seria incapaz de realizar em circunstâncias específica” (Santos et al., 2014, p. 345).
A minha esposa, ela é outra guerreira, entendeu? Sempre trabalhou, conheci ela no trabalho e continua trabalhando. E além disso ela faz os bolos, salgados, sucos, quando chega.
Pesquisadora: Ela tem outra atividade, além de ajudar o senhor?
Luís Bezerra (50 anos, comunicação pessoal): Ela trabalha de diarista, entendeu? Só tem uma vantagem: o pessoal convida ela pra ficar fixa, mas não dá porque nós temos uma criança de 5 anos. Aí, ela vai no dia que dá certo [...]. Aí, como eu falei, a minha esposa, ela é uma guerreira. Ela chega do trabalho, aí vai preparar o suco à noite. De manhã cedo, acorda 5 horas, faz as tapiocas, entendeu? À noite, além do suco, ela faz o bolo, deixa todo prontinho ali. De manhã é só cortar, fatiar, entendeu? (Luís Bezerra, 50 anos, comunicação pessoal)
Esse exemplo ilustra o fato de que o empreendedor acaba por reproduzir em larga escala os ideais precários de trabalho aos quais se submete, já que, para redução dos custos e otimização da produção, reúne outras pessoas em torno dessa rede, dispersando mais precariedade das condições trabalhistas. Desse modo, os trabalhadores informais participam da economia urbana e contribuem com o processo de reprodução do capital, assumindo os custos relativos dessa reprodução como força de trabalho envolvida em um processo de auto exploração, entendido como um negócio próprio e sem grandes custos para o capital (Gonçalves, 2002).
Numa análise breve do que foi trazido pelos entrevistados, fica evidente que o setor de comida de rua ilustra a tendência de aproximação entre o empreendedorismo e a precarização. A partir dos discursos podemos observar questões como a intensificação laboral, o adoecimento físico e mental, condições financeiras inviáveis, trabalhos em longas jornadas e impossibilidade de um planejamento de vida. Informalidade, autonomia falaciosa, intensificação e culpabilização pelo risco de fracasso são características que, embora não exclusivas do setor, são ressaltadas pelos trabalhadores que ali atuam, na medida em que todos eles relatam, a partir das narrativas da história laboral, que as experiências informais permeiam grande parte de suas existências enquanto trabalhadores, desvelando um cenário que faz da informalidade e da precarização norma na vida do trabalhador.
A partir da investigação realizada, percebe-se a articulação no contexto contemporâneo das categorias informalidade, empreendedorismo e precarização. Há aspectos que emergem das narrativas dos trabalhadores que se entrelaçam na atribuição de vinculo das categorias citadas, a saber: a família como rede de apoio ao desenvolvimento das atividades, a informalidade como regra de inserção no mundo do trabalho e a formação e qualificação como delineadores dos vínculos profissionais.
O trabalho empreendedor se constitui como uma dentre distintas formas alternativas de trabalho. A partir de uma série de transformações sociais, foram criadas as condições para uma ampliação da referência ao empreendedorismo como política de enfrentamento a um Estado cada vez mais frágil na condução da relação capital-trabalho, “internalizarem” assim o espírito empreendedor.
Compreendendo que o conceito de empreendedorismo se recicla de tempos em tempos (Costa et al., 2011), há, atualmente, um resgate da figura do empreendedor e de sua função social, e, nesse sentido, a prática empreendedora acaba por reforçar o fim da noção de centralidade do emprego e, consequentemente, dos direitos e garantias atrelados a ele. O cenário da informalidade, espaço privilegiado do ideal empreendedor, parece revelar uma tendência de adoção da precarização. A nomeação do empreendorismo tende a mascarar a vulnerabilização crescente das condições laborais.
A percepção das demandas neoliberais parece ofuscada pela ideia de que o esforço individual é a única alternativa para o êxito profissional, aproximando as categorias informalidade, empreendedorismo e precarização. E, assim, o sistema reforça, amplia e intensifica o processo de precarização laboral, mediante as formas mais diversas, sorrateiras e veladas.
O recorte de que trata esse texto, ao situar-se no âmbito específico da atividade da comida de rua e com um quantitativo de entrevistas pequeno, embora limitado, propicia uma pista, a partir da narrativa dos próprios trabalhadores (Carreteiro, 2017), de como essa realidade pode ser desnaturalizada. Compreender as narrativas propicia subsidiar possibilidade de enfrentamento ao mascaramento da precarização no discurso individual do empreendedorismo no contexto da informalidade.
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