Mecanomorfia Educacional: Uma Crítica a Partir da Teoria
Comportamentalista de Alberto Guerreiro Ramos
Mecanomorfia Educational: A Review from the Behaviorist Theory of
Alberto Guerreiro Ramos
Mecanomorfia Educacional: Una Crítica a Partir de la Teoría
Comportamentalista de Alberto Guerreiro Ramos
Everton Marco Batistela1, Mariza Rotta2
1 Docente da Universidade Tecnológica do Paraná–UTFPR, Brasil.
Filósofo, Mestre em Sociologia e Doutor em Sociologia. Correio
eletrônico: em.batistela@hotmail.com
2 Docente da Universidade Comunitária da Região de Chapecó-UNOCHAPECó,
Brasil. Pedagoga, Mestre em Ciências Sociais e Doutoranda em Educação.
Correio eletrônico: mzrotta@gmail.com
Dirección para correspondencia
Resumo
A crítica da modernidade se tornou debate comum nas últimas décadas do
século XX, empreendida por autores preocupados com a construção de
alternativas societárias. Uma das linhas teóricas centrais do debate
refere-se ao conceito de racionalidade, tendo sido preocupação central
em Weber, Mannheim, Horkheimer, Adorno e outros. Alberto Guerreiro
Ramos, expoente sociólogo brasileiro da segunda metade do século XX,
propõe uma crítica da modernidade pela perspectiva de sua racionalidade
organizacional, condensada em sua Teoria da Síndrome
Comportamentalista. Essa teoria tenta compreender os fundamentos e as
dimensões básicas da razão moderna: Individualismo, Perspectivismo,
Formalismo e Operacionalismo. Em suma, a teoria mostra que vivemos
imersos numa razão centrada no mercado, que fomenta comportamentos em
detrimento da ação (criativa) e que reduz a capacidade racional humana
aos seus aspectos instrumentais e mercadológicos. A partir disso,
tentaremos compreender em que medida a racionalidade moderna acaba
forjando um paradigma educacional funcionalista, reprodutivista e
mecanomórfico.
Palavras-chave: Racionalidade moderna, Alberto Guerreiro Ramos,
educação, Brasil.
Abstract
The critic of the modernity became common debate in the last decades of
the century XX, undertaken by authors worried with the construction of
alternative partners. One of the central theoretical lines of the
debate refers to the concept of rationality of the modernity, having
been central concern in Weber, Mannheim, Horkheimer, Adorno and others.
Alberto Guerreiro Ramos, exponent Brazilian sociologist of the second
half of the century XX, proposes a critic of the modernity for the
perspective of its rationality organizacional, condensed in its
Syndrome Theory Behavioral. That theory tries to understand the
foundations and the basic dimensions of the modern reason:
individualism, perspectivism, formalism and operationalism. In highest,
the theory shows that lived immerged in a reason centered in the
market, that foments behaviors in detriment of the action (creative)
and that reduces the human rational capacity to its instrumental
aspects and marketing. Starting from that, we will try to understand in
that measured the modern rationality ends up forging a paradigm
educational.
Key-word: Modern rationality, Alberto Guerreiro Ramos, education,
Brazil.
Resumen
La crítica de la modernidad se convirtió en debate común en las últimas
décadas del siglo XX, emprendida por autores preocupados por la
construcción de alternativas solidarias. Una de las líneas teóricas
centrales del debate se refiere al concepto de racionalidad, y fue
preocupación central en Weber, Mannheim, Horkheimer, Adorno y otros.
Alberto Guerreiro Ramos, exponente sociólogo brasileño de la segunda
mitad del siglo XX, propone una crítica a la modernidad desde la
perspectiva de su racionalidad organizacional, condensada en su Teoría
de la Síndrome Comportamentalista. Esa teoría intenta comprender los
fundamentos y las dimensiones básicas de la razón moderna:
Individualismo, Perspectivismo, Formalismo y Operacionalismo. En
síntesis, la teoría muestra que vivimos inmersos en una razón centrada
en el mercado, que fomenta comportamientos en detrimento de la acción
(creativa) y que reduce la capacidad racional humana a sus aspectos
instrumentales y mercadológicos. A partir de eso, en este documento
intentaremos comprender en qué medida la racionalidad moderna acaba por
forjar un paradigma educacional funcionalista, reproductivista y
mecanomórfico.
Palabras clave: Racionalidad moderna, teoría comportamentalista,
educación, Brasil.
1. Introdução
Este estudo pretende apresentar um arcabouço conceitual de algumas
tendências fundantes do pensamento moderno que são inerentes à vida
social do homem contemporâneo, que, grosso modo, estruturam uma forma
de conduta que é assimilada no convívio social. Após esta análise,
desenvolveremos uma argumentação em torno da necessidade de resgatar
alguns elementos na educação que possibilitem superar a sua estrutura
reprodutivista, formalista e totalitária, que defendemos ser
determinante na ciência, e por consequência, na educação.
Postulamos isso ancorados no percurso histórico da sociedade e do
pensamento moderno (ciência moderna), desde a passagem do modo de
produção feudal e do pensamento teológico, ao modo de produção
capitalista, nas suas várias fases e nos seus vários imperativos
ideológicos. é preciso, contudo, entender como isto se dá na grande
estrutura social, para ver presente também no campo educacional.
A compreensão disso fica mais clara ao estabelecermos um breve
entendimento sobre comportamento. Principiamos por esta análise, porque
compreendemos que a sociedade, como também a educação, estão enredadas
em comportamentos. As organizações constitutivas da sociedade são, sem
dúvida, sistemas cognitivos. E por isso, os membros de uma organização
em geral assimilam, interiormente, tais sistemas e assim, sem saberem,
tornam-se pensadores inconscientes. Ficam institucionalizados.
A ação inconsciente é então, o comportamento. Ele é uma forma de
conduta que se baseia, como diz Alberto Guerreiro Ramos (1989, p. 51),
na “racionalidade funcional ou na estimativa utilitária das
consequências”. Sua categoria mais importante é a conveniência. Em
consequência, o comportamento é desprovido de conteúdo ético de
validade geral. é um tipo de conduta mecanomórfica, ditada por
imperativos exteriores.
A conduta comportamentalista, conforme a definimos brevemente, surgiu
como consequência de um esforço histórico sem precedentes para modelar
uma ordem social de acordo com critérios de economicidade que foi
transformando o indivíduo em uma criatura que se comporta. é uma
disposição socialmente condicionada, que afeta a vida das pessoas
quando estas confundem as regras e normas de operação particular com
regras e normas de sua conduta como um todo.
A ofuscação do senso pessoal de critérios adequados de modo geral à
conduta humana tornou-se uma característica básica das sociedades
industriais contemporâneas. Essas sociedades constituem a culminação de
uma experiência histórica, que tenta criar um tipo de vida humana
associada, ordenada e sancionada pelos processos auto reguladores do
mercado. Não apenas o mercado e seu caráter utilitário tornaram-se
forças históricas e sociais inteiramente abrangentes, em suas formas
institucionalizadas e em larga escala, mas também demonstraram ser
altamente conveniente para a escalada e a exploração dos processos da
natureza e para a maximização da inventiva e das capacidades humanas de
produção. No entanto, o indivíduo, com isso, ilusoriamente ganhou
melhora material em sua vida e pagou por ela com a perda do senso
pessoal de auto orientação. é muito ilustrativo, neste sentido, a
associação dos ideais científicos com os ideais capitalistas.
Está contido neste modelo de sociedade, cujo coração é mercadológico, a
astúcia de induzir o ser humano a internalizar a coação como condição
normal de sua existência. Espera-se das pessoas que elas acatem as
determinações impostas, de cima para baixo, e que definem o papel que
necessitam desempenhar. Como resultado, há uma completa aceitação
acrítica das determinações referentes aos papeis profissional e social.
Passam então a conformarem-se a modelos estereotipados, no convívio
social, no trabalho, na escola, etc.
Nesse sentido, para se compreender corretamente as teses iniciais aqui
colocadas, procederemos pela apresentação e análise das partes
principais constitutivas da Teoria da Síndrome Comportamentalista de
Alberto Guerreiro Ramos. Em seguida, partindo do conhecimento dessa
teoria, apresentamos a tese do funcionalismo na educação, bem como uma
análise crítica do modelo educacional vigente que se configura a partir
dessa orientação teórica fundante da modernidade.
2. A teoria da síndrome comportamentalista
Para clarearmos o que dissemos, analisaremos quatro traços principais
que atribuímos ser característica da conduta comportamentalista3: a) os
fundamentos da individualidade; b) o perspectivismo c) o formalismo; d)
o operacionalismo. Ao indicarmos as conexões entre estes quatro traços,
no desenrolar da conceituação de ambos, no apontamento das suas
características e na estruturação de suas ações sobre a existência
humana, vai se constituindo a compreensão dos direcionamentos externos
que são impostos sobre o homem.
2.1 O individualismo
Na sociedade medieval, principalmente, os indivíduos encontravam base
firme para o desenvolvimento de suas identidades individuais, através
de uma firme base meta-histórica (Deus). Nas sociedades modernas, a
expressão da identidade é um processo sociomórfico. Ela não se
reconhece mais como miniatura de um cosmos maior, mas como um contrato
amplo entre seres humanos. Assim, a conduta humana se conforma a
critérios utilitários, que, a seu turno, estimulam a fluidez da
individualidade. Na verdade, o homem moderno é uma fluida criatura
calculista, que se comporta, essencialmente, de acordo com regras
objetivas de conveniência.
A ciência moderna, a partir do século XVII, passa a ver a vida humana
com um sentimento permanente de transitoriedade. Valores e propósitos
não são mais vistos como inerentes às próprias coisas. As coisas estão
fadadas a se encadearem num mundo em infinita progressão. Neste mundo
não há um tornar-se algo. O que prevalece é um sentimento generalizado
de transitoriedade, como diz Witehead (1967).
Por sua vez, a revolução copernicana fez alguns estragos na
hierarquização medieval. à semelhança da astronomia, também na
sociedade, há uma alteração no eixo gravitacional. Nesse universo
infinito, do qual Deus é o verdadeiro centro, cada ponto é, da sua
perspectiva, uma espécie de centro relativo. é, portanto, nessa
individualização que se revela na busca do "indivíduo espiritual", em
oposição ao simples homem como raça, povo, partido, corporação, família
ou qualquer outra forma de coletivo, buscando as profundezas da
subjetividade, que o homem acabará criando as bases para uma filosofia
– ética, teoria jurídica, política – que é o liberalismo.
Uma etapa do liberalismo é o seu caráter político. Toma consciência com
as obras de Locke e Montesquieu e tem o seu primeiro grande momento na
Revolução Gloriosa inglesa do século XVII. Esse liberalismo
político-jurídico, que tem suas raízes na Inglaterra medieval,
confunde-se com o desenvolvimento das garantias constitucionais da
liberdade.
é, no entanto, com John Locke (1998) que os temas da liberdade e do
indivíduo se corporificam numa doutrina política. Suas obras, sobretudo
o Segundo Tratado Sobre o Governo Civil mostram a "vontade" e a
"liberdade" como potências do sujeito, quando "ser livre é poder fazer
ou não fazer o que se quer". Essa liberdade humana aparece como a
responsabilidade de cada um, não pela sua vontade, mas pelos seus atos.
Ao tratar do "estado natural" (também utilizado por Hobbes para
justificar o absolutismo), Locke o faz para justificar a liberdade.
Para ele a razão, que é a lei natural, ensina toda a humanidade, de que
sendo todos iguais e independentes, ninguém poderá prejudicar o outro
em sua vida, saúde, liberdade ou posses. A propriedade aparece aí como
um direito decorrente do produto de seu corpo e a obra de suas mãos.
Na justificativa da liberdade e contra a monarquia absoluta, afirma que
a sociedade civil, produto do "consentimento livre" de todos os seus
membros, não pode tolerar que alguém dela faça parte, colocando-se à
margem ou acima da lei comum. Surge, assim, uma nova ordem política
liberal com a supremacia do poder legislativo, porquanto é o delegado
direto dos membros da comunidade. Mas também este não pode afastar-se
do bem público. O legislativo não pode ser ininterrupto, nem os
legisladores devem ser executores das leis votadas, sendo que eles
mesmos estão sujeitos a elas. O executivo deve ser um poder diverso,
subordinado ainda assim ao legislativo. Mas o verdadeiro soberano passa
a ser o povo, pois é ele, e não o legislativo, o detentor do verdadeiro
poder soberano. O poder é um depósito confiado aos governantes, em
proveito do povo, e não uma submissão irrestrita. Se os governantes
agem de maneira contrária ao fim para o qual haviam recebido a
autoridade, o povo pode retirar aquele depósito, isto é, pode retirar
aquela delegação, retomando a soberania inicial, podendo confiá-la a
quem apresente melhores condições para exercer o poder. Para Locke não
há um contrato de submissão, mas apenas uma delegação.
Assim, a ideologia do individualismo funda suas bases sobre a igualdade
e a liberdade. Ao desprezarem a hierarquia social, todos os homens
tornam-se iguais e livres perante o Estado. As funções determinadas
pela posição social que o indivíduo ocupa são abolidas e,
conseqüentemente, o Estado não consegue administrar a vida social e
individual do homem. Não há referências para se espelhar, e a noção de
direitos e deveres se desvanece. O homem moderno abdica de todo sistema
de crenças e valores, negligenciando a trajetória de sua história
social para consagrar a satisfação pessoal. Ocorre uma desintegração do
indivíduo em relação à sociedade. Ele vive em função das suas
necessidades individuais, de maneira que a existência do outro varia de
acordo com sua necessidade.
O sentimento de transitoriedade das coisas, também merece destaque
neste contexto de supremacia da individualidade. é uma consequência da
interiorização acrítica, pelo indivíduo, da auto representação da
sociedade moderna, que se define como um precário contrato entre
indivíduos que maximizam a utilidade, na busca da felicidade pessoal,
entendida como uma busca de satisfação de uma interminável sucessão de
desejos.
Em consequência de seu caráter competitivo, o mundo social como um todo
se torna estranho ao homem, este tenta superar a sua alienação, seja
anulando-se através da passiva conformidade a papéis que prevalecem
aqui e ali, ou reconhecendo-se, dentro de si mesmo, afirmando assim uma
identidade demasiadamente consciente de si mesma. Mas já que o centro
ordenador de sua vida não está em parte alguma, sua identidade é de sua
própria criação. O indivíduo se isola da realidade e é encorajado a
lançar-se a procura da própria individualidade, num mundo ordenado de
acordo com regras contratuais de agregação social de interesses
competitivos. Quando a condição humana é presumida como apenas social,
a individualidade é inevitável.
Então, o forte sentimento individualista, força o homem moderno a agir
somente em obediência a prescrições externas, sendo incapaz de ação,
apenas de comportamento, já que não delibera livremente. O
individualismo constitui-se, então, na primeira peça do quadro que
queremos construir para fundamentarmos teoricamente a noção do
arcabouço de comportamentos entendidos como suficientes para as
condutas humanas.
2.2 O Perspectivismo
Com a interpretação da sociedade como um sistema de regras contratadas,
o indivíduo é levado a compreender que tanto a sua conduta quanto a
conduta dos outros é afetada por uma perspectiva. é certo que a
perspectiva é sempre um ingrediente da vida humana, em qualquer
sociedade. Mas somente na sociedade moderna é que o indivíduo adquire a
consciência desse fato. Essa sociedade gera um tipo peculiar de
conduta, que merece ser referida como comportamento, e para
comportar-se bem, então, o homem só tem que levar em conta as
conveniências exteriores, os pontos de vista alheios e os propósitos em
jogo.
O destaque do Perspectivismo como um aspecto fundamental do alicerce
psicológico da ação humana, exige alguns antecedentes históricos para a
sua fundamentação. A perspectiva transformou-se em um termo técnico,
primeiro no domínio da pintura. Giotto já admite que aquilo que o
artista oferece numa tela não é uma cópia da natureza, mas a natureza
de acordo com os olhos do pintor. Mais tarde Petrarca repetiria Giotto
em sua máxima: “Cada um deveria escrever seu próprio estilo”.
Já no século XVI, na Itália, o Maneirismo assume a característica
básica da arte. é aqui que o conceito de propriedade intelectual,
desconhecido na Idade Média, é reconhecido. No entanto, nessa época, o
perspectivismo não está confinado aos meios artísticos. Constitui uma
feição da vida diária de um número crescente de pessoas. Na realidade,
o mercado é a força subjacente, geradora da visão perspectivista da
vida humana associada.
Pode-se perceber, em Maquiavel, por exemplo, que o perspectivismo é
presente na analogia usada por ele na dedicatória d’O Príncipe a
Lourenço de Médici. A dedicatória em si, sob esta ótica, é um recurso
de conveniência. Mas o que deve ser salientado é a caracterização, que
Maquiavel faz, da forma correta de estudar a arte de governar. Ele
compara os estudiosos da política com aqueles
que desenham os contornos dos países se colocam na planície para
considerar a natureza dos montes, e para considerar como as planícies
ascendem aos montes, assim também para conhecer bem a natureza dos
povos é necessário ser príncipe, e para conhecer a dos príncipes é
necessário ser do povo. (Maquiavel, 1979, p. 3)
Maquiavel recorre a esta metáfora perspectivista a fim de declarar que
o estudo da política requer uma integração dos pontos de vista tanto do
príncipe quanto do povo.
O príncipe precisa ser instruído sobre a perspectiva do governante para
preservar e aumentar seus bens. Precisa compreender a perspectiva do
cidadão comum para governar com estabilidade e permanência.
Pode-se ver o Perspectivismo em Maquiavel, também, quando defende que o
príncipe não deveria considerar seu dever a prática de qualidades
“consideradas boas”, porque elas podem resultar na sua “destruição”. Há
qualidades “que parecem vícios, mas que, se ele as pratica, lhe poderão
trazer segurança e bem-estar” (Maquiavel, 1979, p.64). é certo que,
“todo mundo”, diz ele “admitirá que seria muito louvável que um
príncipe exibisse [as] qualidades... consideradas boas... Mas nenhum
governante pode possuí-las ou praticá-las inteiramente, por causa de
condições humanas que tal não permitem” (Maquiavel, 1979, p. 64). Ele
é, na verdade, um dos primeiros pensadores modernos que compreenderam
os padrões motivadores imanentes a uma sociedade centrada no mercado.
Tais padrões em geral, e o Perspectivismo em particular, tornaram-se os
padrões normativos da conduta humana.
Essa perspectiva tem consequências complexas, uma delas dizendo
respeito ao lugar de destaque que a ciência moderna conquistou na
sociedade contemporânea. Com base no pressuposto de discurso neutro,
objetivo e descritivo, a ciência fez da verdade e do conhecimento seu
latifúndio exclusivo. Mas a perspectiva nietzschiana levanta a suspeita
de que não há uma verdade absoluta e coloca a ciência no mesmo patamar
das artes e das religiões, como apenas uma entre as muitas possíveis
interpretações da realidade.
Nietzsche considera que a consciência, por estar condicionada ao lugar
que ocupa no espaço e a certo momento no tempo, assimila um mundo
aparente determinado pelas necessidades do sujeito, incapaz de
apreender a objetividade. Sustenta que, para os indivíduos e as
espécies, a verdade corresponde a sua maneira de ser, pois suas
representações do real constituem a resposta adequada as suas
necessidades. Embora limitada ao ponto de vista do sujeito, cada
verdade é válida nos limites de sua apreensão.
O sujeito seleciona o que deseja conhecer, sem, no entanto, deformar a
verdade. A realidade apresenta inúmeras perspectivas, todas elas
verdadeiras e inerentes à condição humana, pois a superação da
perspectiva sugeriria a possibilidade de considerar as coisas de um
ponto de vista absoluto inexistente.
Assim, ao definirmos que o homem moderno está voltado à observância de
determinadas conveniências exteriores e propósitos em jogo,
descortinamos um segundo elemento fundamental na estruturação da
conduta humana externamente orientada.
2.3 O Formalismo
O formalismo é um terceiro aspecto dos fundamentos psicológicos que
inspiram a noção de conduta comportamentalista, que estrutura valores
fundamentados em aceitações sociomórficas.
O formalismo ainda é usado hoje em dia como uma categoria explicativa
da conduta humana. Na realidade, tornou-se um traço normal da vida
cotidiana, nas sociedades centradas no mercado, onde a observância das
regras substitui a preocupação pelos padrões éticos substantivos.
Exposto a um mundo infiltrado de relativismo moral, o indivíduo
egocêntrico sente-se alienado da realidade e, para superar esta
alienação, entrega-se a tipos formalistas de comportamento, isto é, se
sujeita aos imperativos externos segundo os quais é produzida a vida
associada. Torna-se um maneirista. De fato, o maneirismo é a disposição
psicológica exigido por um tipo de política divorciada do interesse
pelo bem comum, por um tipo de economia unicamente interessada em
valores de troca, e por uma ciência, em geral, essencialmente definida
por métodos e por praxes operacionais.
O comportamento é uma manifestação do maneirismo e é inteiramente
capturado pelos critérios incidentais da arena pública. Seu significado
exaure-se em sua aparência perante os outros. Sua recompensa está no
próprio reconhecimento como adequado, correto, justo. Seu sujeito não é
uma individualidade consistente, mas uma criatura fluida, pronta a
desempenhar papéis convenientes.
Uma criteriosa visão da natureza humana fundamentada sobre valores
comportamentalistas pode ser extraída da cuidadosa leitura de dois
documentos maneiristas, O Cortesão, de autoria de Baldesar Castiglione
e da Teoria dos Sentimentos Morais, de Adam Smith. Uma vez que tais
documentos são especialmente reveladores em relação ao formalismo.
A corte, tal como apareceu na Itália, na Espanha, na França e em outros
países europeus, nas fases iniciais do capitalismo, foi um fenômeno
histórico especial. Nada, nos domínios da religião, da política, da
economia, do militar, do artístico, ou em outros domínios da vida
pública, conquistava caráter normativo, geral, sem primeiro ser
filtrado pela corte. Uma vez que a corte influía decisivamente sobre os
negócios humanos do dia-a-dia, as maneiras predominantes entre os que
eram admitidos em seu círculo transformavam-se em normas de boa conduta
em geral. Pela própria identificação com tais maneiras, sem atitude
crítica, Castiglione transforma historicamente critérios precários em
critérios de boa conduta humana.
Castiglione está basicamente interessado na aprovação social. Assim
sendo, descreve o comportamento palaciano como um padrão geral de
conduta humana. Ele sugere, inclusive, que a única recompensa da boa
conduta é o louvor público. Para ele não há a boa conduta por si só e,
em conseqüência, um dos tipos que criou aconselha o cortesão a “prestar
atenção ao lugar e à pessoa em cuja presença estiver” e a “regalar os
olhos daqueles que o estiverem olhando” (Castiglione, 1976, p. 116).
Num período posterior da sociedade ocidental, a arena pública
transcenderá a corte e transformar-se-á na própria sociedade. As regras
predominantes de comportamento social transformar-se-ão em regras de
boa conduta em geral.
Em sua Teoria dos Sentimentos Morais, Adam Smith parece tentar
harmonizar o significado de razão dado por Aristóteles, com critérios
de economicidade, e substitui aquele significado do patriarca da
filosofia pelo sentimento de gregarismo. Escreve ele:
[...] embora a razão seja, indubitavelmente, a fonte das regras gerais
de moralidade, e de todos os julgamentos morais que formam através
dela, é de todo absurdo e incompreensível supor que as percepções
iniciais do certo e do errado possam ser derivadas da razão... Essas
primeiras percepções, da mesma forma que todos os outros experimentos
em que se fundamentam quaisquer regras gerais, não podem ser objeto da
razão, mas de imediato senso e sentimento... A razão, apenas, não pode
tornar qualquer objeto particular, por si mesmo, agradável ou
desagradável à mente. (Smith, 1976, p. 506)
Em Adam Smith, assim como em todos aqueles que afirmam que a moralidade
é compatível com a própria socialidade, o indivíduo é deixado sem um
piso firme, metassocial, para a responsável determinação do caráter
ético da sua conduta. O Homem não age, propriamente, mas comporta-se,
isto é, é inclinado a conformar-se com as regras eventuais da aprovação
social. Em consequência, a educação não visa desenvolver o potencial do
indivíduo para tornar-se um bom homem, no sentido aristotélico. “O
grande segredo da educação”, declara Smith, “é dirigir a vaidade a
objetos adequados” (Smith, 1976, p. 417). A correção da conduta humana
está na sua mera forma, não em seu conteúdo intrínseco. Smith sucumbe
ao fascínio do episódico, cujo modelo é transformado em um padrão de
conduta humana em geral.
O que se vê então, no seio do formalismo, é uma substituição dos
padrões éticos por regras de comportamento social, baseadas na
aparência. Esta atitude vai absorvendo o homem e conduzindo-o a uma
realidade sem atitude crítica, expondo um mundo infiltrado de
relativismo moral, formando a terceira característica da sociedade
comportamentalista.
2.4 O Operacionalismo
O operacionalismo, como é entendido atualmente, tenta responder à
seguinte pergunta: Como avaliar o caráter cognitivo de uma afirmação?
Há duas respostas básicas para esta pergunta, e uma delas admite a
existência de diversos tipos de conhecimento (tal como o metafísico, o
ético, o físico), cada um dos quais requerendo normas específicas de
verificação. Todavia, há aqueles que alegam que apenas as normas
inerentes ao método de uma ciência natural de características
matemáticas são adequadas para a validação e a verificação do
conhecimento. Esta última resposta constitui a essência daquilo que
aqui é denominado de operacionalismo.
O operacionalismo é permeado de uma orientação controladora do mundo e,
desse modo, induz o pesquisador a enfocar seus aspectos suscetíveis de
controle. Filosoficamente isto ocorre porque o operacionalismo reflete
a visão do universo inerente à física clássica. Por exemplo, Galileu
ensinou que aquilo que é real no mundo só pode ser considerado como
extensão, espaço, massa, movimento e solidez. Consequentemente, o
aparelho conceitual para abordar a realidade tem que ser derivado, por
força, da matemática. Há pois, uma substituição do abstrato pelo
concreto, que Whitehead chama de “falácia da concretidade mal
colocada”, (Whitehead, 1967, p. 51).
Hobbes aceitou a doutrina de Galileu e, de acordo com ela, desenvolveu
sua noção de “filosofia civil”, expressão que abrange aquilo que é hoje
conhecido como ciência política e social. Assim é que afirma ele que
sentimentos como amor, benevolência, esperança, aversão, da mesma forma
que a conduta humana em geral, “devem ser considerados do ponto de
vista da física” (Hobbes, 1959, p. 72).
Uma vez que as noções de bem e de mal, e todas as virtudes e
sentimentos pertencentes ao domínio da ética, assumem o caráter de
qualidades secundárias, o planejamento de uma boa sociedade equivale ao
planejamento de um sistema mecânico, em que os indivíduos são
engrenados, por instigações exteriores, para suportar as regras de
conduta necessárias para a manutenção da estabilidade desse sistema.
Na raiz do operacionalismo está o interesse em lidar com problemas
práticos do mundo e esse interesse pode ser encontrado explícito em
Francis Bacon, em seu Novum Organum, onde afirma que “conhecimento é
poder”. Coerente com essa orientação é a assertiva de Bacon, de que
“aquilo que é mais útil na operação, é o mais verdadeiro no
conhecimento” (Bacon, 1968, p. 122). é nesse sentido que o que deturpa
o operacionalismo é sua identificação do útil com o verdadeiro.
Utilidade é uma noção cheia de ambiguidade ética. Em si mesmo, aquilo
que é útil pode servir para ser tanto eticamente sadio quanto
eticamente errado no domínio social.
Outra característica do operacionalismo é a recusa em reconhecer às
causas finais qualquer papel na explicação do mundo físico e social.
Sua inferência é a de que as coisas são, simplesmente, resultados de
causas eficientes, sendo o mundo inteiro um encadeamento mecânico de
antecedentes e conseqüentes. Hobbes exprime a idéia de causalidade
inferida pelo operacionalismo como se segue: “Uma causa final não tem
lugar senão naquelas coisas que tem senso e vontade e isso também
provarei... ser causa eficiente” (Hobbes, 1959, p. 132).
A coerência Hobbesiana a tal afirmação é expressa na definição da
razão, como sendo cálculo de consequências, no sentido mecânico. Ele
compreendeu, corretamente, que não se podia aceitar o operacionalismo
sem reduzir o homem a uma espécie mecanomórfica de entidade. Assim,
conscientemente, ele equipara a liberdade à necessidade. Pensa ele,
desta forma, que o homem nunca age, propriamente, mas cede sempre às
instigações exteriores, porque sua “vontade... e cada uma das
inclinações do homem, enquanto este delibera, são igualmente
necessárias, e dependem de uma causa suficiente, tanto quanto qualquer
outra coisa, seja ela qual for” (Hobbes, 1940, p. 247).
Consequentemente o homem não age, mas se comporta; porque não existe
criatividade no universo mecanomórfico.
Por impressionantes que se afigurem os traços básicos da ação humana
conduzida por comportamentos, deve-se compreender que os mesmos não
estão afetando remotamente a vida das pessoas. Na realidade, constituem
o credo não enunciado de instituições e organizações que funcionam na
sociedade centrada no mercado. Para ter condições de enfrentar os
desafios de uma tal sociedade, a maioria de seus membros interioriza
comportamentos e seus padrões cognitivos. Essa interiorização ocorre,
geralmente, sem ser notada pelo indivíduo, e assim o comportamento
transforma-se numa segunda natureza.
O operacionalismo dissemina a idéia de que é preciso uma orientação
controladora do mundo, ao mesmo tempo se deve recusar reconhecer que as
causas finais possuam qualquer papel na explicação do mundo físico e
social. A ética, virtudes e sentimentos, assumem o caráter de
qualidades secundárias, por fugirem ao domínio mecânico. Está
estruturado o arcabouço teórico da sociedade comportamentalista, que
identifica um ser passivo, que se comporta, sem condições de recuperar
a sua essência humana: a capacidade de agir.
3. Funcionalismo educacional
Estes mesmos aspectos vistos na totalidade da sociedade, se fazem
presente também no campo educacional, como queremos mostrar a seguir. A
crescente complexidade e o agravamento dos problemas sociais, gerados
pelo triunfo da racionalidade econômica e da razão tecnológica que a
sustenta, levam à necessidade de reorientar os processos de produção e
aplicação de conhecimentos, assim como a formação de habilidades
profissionais, para conduzir um processo de transição para um outro
modelo de produção econômica, política e científica.
O discurso desenvolvimentista definiu a crença de que a transferência
de tecnologia moderna seria o meio mais eficaz para reduzir as
disparidades entre os países industrializados e os países em
desenvolvimento. Acreditou-se que uma articulação funcional do sistema
científico-tecnológico ao sistema econômico e produtivo estabelecido,
assim como o aproveitamento das vantagens comparativas oferecidas pela
dotação de recursos humanos, naturais e tecnológicos de cada país,
aplainaria o fosso de desigualdade entre países pobres e ricos,
dissolvendo as desigualdades regionais e sociais internas num processo
de homogenização tecnológica e cultural.
é neste caminho que a educação brasileira, a serviço dos ideais
desenvolvimentistas, está seguindo. Apoiada no paradigma
estrutural-funcionalista, a educação, por muito tempo sustentou uma
mentalidade em que se acreditava ser a escola a instituição que
possibilitaria a cada “indivíduo”, condições de sucesso, sendo a
educação como responsável por promover ascensão social.
Para Parsons, a escola funciona como um agente de socialização que
treina as personalidades individuais de modo a se prepararem para
desempenhar, futuramente, o papel de adultos, úteis e funcionais em sua
sociedade. Para ele, ao ingressar na escola, as crianças estariam ainda
niveladas, com a mesma carga de conhecimentos, apresentando diferenças
apenas quanto ao sexo. Minimizam-se assim, ou desconsideram-se, no
contexto escolar, as experiências trazidas pelos alunos de seus lares,
do meio em que vivem.
Esta teoria diz-se universalista e polarizadora. O caráter
universalista explica-se pela aplicação de tarefas, conteúdos e
avaliações comuns a todos os alunos, enquanto a polarização consiste na
reunião desses alunos em um único patamar, inferior ao de seus
professores, dando à escola a possibilidade de um julgamento comum do
aproveitamento dos alunos. Acredita-se que, dentro destes padrões, a
oportunidade oferecida a cada um dos alunos é a mesma, dependendo
apenas deles o aproveitamento dessa condição de ascenderem socialmente,
sendo as desigualdades de resultados explicadas pelos dons naturais
possuídos por determinadas crianças.
Na verdade, esta igualdade de possibilidades é bastante questionável.
Além de ignorar os processos de socialização já vividos pela criança
fora da escola, desconsidera as diferentes habilidades de aprendizado e
a própria pressão social que acaba por determinar aos desfavorecidos a
impossibilidade de atingir qualquer mudança em suas condições. é o que
critica Bourdieu no seguinte fragmento:
é provavelmente por um efeito de inércia cultural que continuamos
tomando o sistema escolar como um fator de mobilidade social, segundo a
ideologia da "escola libertadora", quando ao contrário tudo tende a
mostrar que ele é um dos fatores mais eficazes de conservação social,
pois fornece a aparência de legitimidade às desigualdades sociais, e
sanciona a herança cultura e o dom social tratando como dom natural.
(Bourdieu, 2003 p. 37)
Assim, o que na teoria de Parsons é apresentado como libertador nada
mais é que uma omissão do sistema diante da ineficácia da proposta
educacional vigente. Consente que todas as medidas possíveis para sanar
as desigualdades e para promover a possibilidade de ascensão social já
tivessem sido aplicadas, restando a responsabilidade pela vitória ou
fracasso ao próprio aluno.
A educação é, portanto, responsabilidade única da própria criança, ou
seja, tendo tido ela as mesmas oportunidades - conteúdos, avaliações e
tarefas iguais - que os outros alunos, seu insucesso corresponderia
somente à sua indiferença, desinteresse e falta de dons que lhe
privilegiem na aquisição de novos conhecimentos. Desconsidera-se
qualquer bagagem social que possa intervir neste processo, ou mesmo a
inadequação do aluno a este sistema de ensino (ou do sistema de ensino
para o aluno).
Daí dizer que a seleção promovida pela escola dá-se pela valorização
dos dons e talentos possuídos pela criança. Não se percebe que são, na
verdade, habilidades adquiridas no meio cultural em que vivem. Isso
quer dizer que, na acepção de Parsons, se possuísse “dons”, a criança
poderia se mover socialmente, além de conhecer o sucesso escolar.
Esta fundamentação Parsoniana estrutural-funcionalista é que embasa
nossa central preocupação: a de que a ciência moderna, e por
pressuposto a educação corrente, estão atadas às mesmas causas
(positivistas, totalizantes, uniformalistas, estruturalistas e
funcionalistas) nascidas do jogo da repartição dos custos e benefícios
deixados por uma ordem homogenizante, unipolar, que dita as normas do
comércio, da justiça, da verdade e da equidade. Diante da racionalidade
econômica, funcional e instrumental que domina o espaço da ciência e da
educação, propomos uma compreensão educacional (e portanto uma nova
racionalidade) baseada em novos princípios éticos, valores culturais e
potenciais produtivos, nascidos da consubstanciação entre educação e
meio.
Propor-se a uma compreensão do significado de meio em educação implica
atribuir sentido ao cotidiano e ao seu entorno. Professores, alunos e
comunidade escolar leem, na educação, aspectos significativos de acordo
com sua perspectiva cultural. Contudo, refletir sobre a educação atual
não é tarefa das mais fáceis em uma época caracterizada pela
diversidade de pensamentos, paradigmas e ações. Vive-se a
heterogeneidade das abordagens sociais, das leituras de mundo, o
esfacelamento das grandes teorias que explicaram as formações sociais
até agora. A sensação é de caos, de generalidades, de falta de
ancoradouro e de explicações totalizantes até então consideradas
capazes de serem obtidas. Cabe, então, refletir sobre como se chega a
uma forma de definição de meio, compreendendo-a não como única, mas por
ser diversa, em acordo com a multiplicidade de saberes possibilitados
pela multiplicidade de abordagens que nossos tempos dispõem.
Daí que entendemos que a educação tem mais significado quando está
profundamente imbricada, (integrada), com a comunidade. Assim, o mundo
não é somente um amontoado de objetos a serem contemplados com toda
serenidade. Ele não se reduz a este amontoado de coisas inertes, ele
apresenta-se de uma maneira sincrética e sobretudo dinâmica. Não existe
de uma parte o indivíduo e de outra o meio, mas um complexo
indivíduo-meio. Assim, não é exagero dizer que a relação indivíduo-meio
constitui dois aspectos da mesma realidade. Decorre disto que, se no
caso dos animais, há uma acomodação à realidade do ambiente, no caso do
homem, há uma modificação, adequando-o à sua convivência. A mudança
neste caso não é unilateral, é dialética, há reciprocidade entre
indivíduo e meio. Muda um, modifica-se o outro. Assim não se pode
pretender que o complexo indivíduo-meio se destrua e se reduza ao nível
do homem, como um ser psiquicamente autônomo e distante do mundo. Que
ele apresenta uma diferença qualitativa com relação às situações de
vida que o rodeiam, é um fato inquestionável, mas ele não se fixa na
sua condição superior e, portanto, não pode abdicar da realidade
(corpórea por exemplo) de que é um prolongamento do meio e continuidade
superior do mesmo.
O crescimento progressivo do homem, o equilíbrio interior do complexo
indivíduo-meio, constituem-se a partir de uma realidade já existente,
de uma evolução anterior; de tal rendimento, que é anterior à
consciência do sujeito, é que se vai compor a constituição de si mesmo
da pessoa. Porém, no mesmo instante em que se constata uma
interdependência entre indivíduo e meio, há, notadamente uma clara
superioridade do primeiro. O comportamento do homem se apresenta
prodigiosamente enriquecido e, por ele mesmo, radicalmente diferente.
Cabe perguntar aqui: se em razão do progresso humano de seu sistema de
significação, pode-se tomar o homem como sendo essencialmente
constituído a partir de seu processo abstrativo? No mundo humano, o
ulterior modifica a constituição do anterior. Em razão disto pode-se
dizer que a objetividade não é dom, mas adquire-se historicamente, por
um processo de aprendizagem e no intercâmbio indivíduo-meio.
Contudo, não é suficiente que a educação tire sua referência do meio e
em seguida o abandone por não ser essencial à abstração, supondo um
salto imediato e imprevisível a outro nível de consciência como faz a
educação formal, estabelecendo uma separação entre indivíduo e meio.
Esta cisão radical operada antes de tudo entre o sujeito e o objeto é
que queremos por em causa, averiguando aí as implicações na ação
educativa. Toda a questão está em saber, com efeito, se é através da
observação dos fatos anteriormente estabelecidos que se define uma
certa progressão aplicável à estrutura da aprendizagem, ou o contrário,
a estrutura representativa (conhecimento teórico) constitui-se
independente do meio.
Nossa perspectiva se firma no postulado de que é a partir do vivencial
que se busca a organização das demais estruturas, como a inteligência
espacial e a inteligência racional ou lógica. Então, é graças à ação
correlata dos processos de assimilação do meio e acomodação ao meio que
o homem eleva-se progressivamente à inteligência conceitual. Por um
lado, a assimilação recíproca dos esquemas e das múltiplas combinações
do meio favorecem a acomodação; de outro lado, a acomodação aos
movimentos do meio prolonga-se em assimilação, garantindo aquisições
novas e a manutenção das antigas.
Deve-se, contudo observar certo cuidado ao se postular tais afirmações,
consistindo principalmente em evitar certa redução do psicológico ao
biológico ou de sobreposição de um ao outro. Portanto, é necessário
estabelecer que há uma reciprocidade de necessidades; tanto o meio é
necessário ao indivíduo, quanto este ao meio, na medida exata. Daí se
tem que, parte do indivíduo integra-se ao meio e outra parte lhe é
constituição própria, formando o que chamamos de complexo
indivíduo-meio.
4. Considerações finais
Fazendo intervir agora aquela ideia inicial, do meio como sendo o mundo
da vida, com as especificações que acabamos de expor, parece não restar
dúvidas que o ensino tradicional falha não tanto por ser disciplinar,
mas por não orientar e impulsionar as capacidades cognitivas,
inquisitivas e criativas dos estudantes, e por estar desvinculado dos
problemas de seu contexto sociocultural e ambiental. Neste nível é que
vem corroborar a compreensão do meio, como fomentadora de um pensamento
da complexidade que seja crítico, participativo e propositivo.
O discurso dominante do desenvolvimento sustentado está levando à uma
readaptação das consciências, atitudes e capacidades, por ter,
principalmente, institucionalizado o ideal da educação. Contudo, a
formação vai além de um processo de capacitação que busca reciclar e
ajustar as habilidades profissionais às novas funções e normas dos
processos produtivos e para a criação de controle das novas
tecnologias. De acordo com Leff (2002, p. 254) a formação “ultrapassa a
assimilação passiva e a reprodução crítica e um modelo global
homogêneo, que é questionado pelos interesses e perspectivas que
definem o campo diverso e conflitivo do desenvolvimento sustentável”.
A formação é um processo de criação de novos valores e conhecimentos,
vinculados a transformação da realidade. Inserida aí, a compreensão do
meio articula as formações ideológicas e conceituais com os processos
de produção e aquisição do conhecimento e saberes, num processo
histórico de transformação social.
O conceito anterior de meio, entendido como sendo a totalidade dos
organismos e as condições necessárias a sua vida que constituem um
todo, indica, claramente, a marcante influência do pensamento
biologista, além de entender a totalidade, circundante do indivíduo,
como constituídas de interdependências, estrategicamente articuladas
que colaboram para que aquele meio seja constituído.
A compreensão do meio, por sua vez, é fundada na diversidade das
condições naturais e culturais que o definem. Portanto, não na
unicidade totalizante, mas na complexidade globalizante. Assim, a
questão do meio oferece uma visão renovada do saber que traz implícito
um novo sistema de valores, que, por consequência, promoverá nova
formação, nova moralidade e novas habilidades.
Na forma como, tanto o edifício do conhecimento, quanto o sistema
educacional contemporâneo foram constituídos, inscrevem-se no seio do
aparelho ideológico do estado, reprodutor do modelo social desigual,
que, como diz Leff (2002, p. 256) “reproduz o modelo social desigual,
insustentável e autoritário, através de formações ideológicas que
moldam os sujeitos sociais para ajustá-los às estruturas sociais
dominantes”. Por isso mesmo, que não basta uma retroalimentação entre o
meio e a educação, é preciso, mais que isto, reconstruir o arcabouço
epistemológico da educação, sem esquecer que isto deve derivar das
práticas concretas que se desenvolvem no meio.
Implica tomar também, o ambiente em seu contexto físico, biológico,
cultural e social, como uma fonte de aprendizagem, como uma forma de
concretizar as teorias na prática a partir das especificidades do meio.
Porém, diz Leff (2002, p. 208) o saber
é um projeto de revisão e reconstrução do mundo através de estratégias
conceituais e políticas que partem de princípios e fundamentos de uma
nova racionalidade que foram desterrados e marginalizados pelos
paradigmas dominantes da ciência, como impurezas do conhecimento e
externalidades do processo de desenvolvimento.
Desta forma então, a pedagogia do meio é consubstanciada com uma nova
racionalidade e com um novo saber, que entendem a realidade como
sistemas complexos integrados por processos diferenciados de ordem
natural e cultural.
Diferentemente da pedagogia em voga, que é economicista, mercadológica,
positivista, a pedagogia do meio trabalha no sentido de ensinar a
perceber e internalizar a complexidade, diversidade e potencialidades
do ambiente, exatamente em oposição a fragmentação da realidade. Neste
sentido, a pedagogia deverá gerar condições de compreensão dos
processos inter-relacionados e interdependentes (não estáticos,
homogêneos, regidos por leis universais) e de compreensão da
causalidade múltipla dos fatos (complexidade da realidade).
Portanto, a construção de uma nova racionalidade exige a transformação
dos paradigmas científicos tradicionais e a produção de novos
conhecimentos, o diálogo, hibridação e integração de saberes, assim
como a colaboração de diferentes especialidades. Isto gera novas
perspectivas epistemológicas e métodos para a produção de
conhecimentos, assim como para a integração prática de diversos saberes
no tratamento de um problema comum (Apostel, Berger, Briggs y Michaud,
1975). Traça-se assim “novas estratégias teóricas para a produção
científica e a inovação tecnológica” (Leff, 2002), envolvidas
missivamente com um novo ideal de retotalização do saber, que não seja
somente a soma nem a integração dos conhecimentos disciplinares
herdados, ou a busca de um paradigma globalizante, ou organização
sistêmica do saber, e por fim, que não seja a uniformização conceitual
por meio de uma metalinguagem interdisciplinar.
Notas y Citas
3 Os conceitos usados aqui (individualismo, perspectivismo, formalismo
e operacionalismo) foram retirados da obra de Alberto Guerreiro Ramos,
referenciada no final deste artigo.
Referências
Apostel, Leo, Berger, Guy, Briggs, Asa y Michaud, Guy. (1975).
Interdisciplinariedad. Problemas de la Enseñanza y de la Investigación
en las Universidades. México: Asociación Nacional de Universidades e
Institutos de Enseñanza Superior (Trad. de Francisco J. González).
México: Anuies.
Bacon, Francis. (1968). Novum Organum (2a. ed.). São Paulo: Abril
Cultural.
Bourdieu, Pierre. (2003). A escola conservadora: as desigualdades
frente à escola e à cultura. In Maria Alice Nogueira, e Alfredo Catani
(eds.), Escritos de educação (5a. ed., pp. 37-52). Petrópolis: Vozes.
Castiglione, Baldesar. (1976). Il Libro del Cortegiano (V edizione).
Milano: Garzanti.
Guerreiro Ramos, Alberto. (1989). A nova ciência das organizações – uma
reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro: Editora da
Fundação Getúlio Vargas.
Hobbes, Thomas. (1959). Os Pensadores (2a. ed.). São Paulo: Abril
Cultural.
Hobbes, Thomas. (1940). The English Works (vols. 1, 4 e 5). London:
Malesworth Edition.
Leff, Henrique. (2002). Saber Ambiental: sustentabilidade,
racionalidade, complexidade e poder. Petrópolis: Vozes.
Locke, John. (1998). Dois Tratados sobre o Governo. São Paulo: Martins
Fontes.
Maquiavel, Nicolau. (1979). O Príncipe (2a. ed.). São Paulo: Abril
Cultural.
Nietzsche, Friedrich Wilhelm. (1968). Genealogia da moral (Trad. Paulo
Cesar Souza; 2a. ed.). São Paulo: Brasiliense.
Parsons Talcott. (1968). A classe como sistema social. In Sulamita de
Britto (org.), Sociologia da Juventude: a vida coletiva e juvenil (pp.
112-127). Rio de Janeiro: Zahar.
Smith, Adam. (1976). A Teoria dos Sentimentos Morais. Indianápolis,
Indiana: Liberty Classic.
Whitehead, Alfred North. (1967). Science and the modern world. New
York: The Free Press.
Correspondencia a:
Everton Marco Batistela. Docente da Universidade Tecnológica do Paraná–UTFPR, Brasil.
Filósofo, Mestre em Sociologia e Doutor em Sociologia. Correio
eletrônico: em.batistela@hotmail.com
Mariza Rotta. Docente da Universidade Comunitária da Região de Chapecó-UNOCHAPECó,
Brasil. Pedagoga, Mestre em Ciências Sociais e Doutoranda em Educação.
Correio eletrônico: mzrotta@gmail.com
Ensayo recibido:13 de febrero, 2014 Enviado para corrección:16 de
julio, 2014 Aprobado: 22 de setiembre, 2014