Aportes
da epistemologia qualitativa e da metodologia
construtivo-interpretativa de González Rey à pesquisa educacional: um
estudo de caso
Contributions of Gonzalez´s Rey qualitative epistemology and constructive-interpretative methodology to educational research: a case study
Volumen 20, Número 2
Mayo - Agosto pp. 1-20
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Alcantara, Raquel de., y Oliveira, Andressa Martins do Carmo. (2020). Aportes da epistemología qualitativa e da metodología construtivo-interpretativa de González Rey à pesquisa educational: um estudo de caso. Revista Actualidades Investigativas en Educación, 20(2), 1-20. Doi. 10.15517/aie.v20i2.41639
Aportes da epistemologia qualitativa e da metodologia construtivo- interpretativa de González Rey à pesquisa educacional: um estudo de caso
Contributions of Gonzalez´s Rey qualitative epistemology and constructive-interpretative methodology to educational research: a case study
Andressa Martins do Carmo de Oliveira2
Resumo: Este artigo tem como objetivo discutir algumas das contribuições da Epistemologia Qualitativa e do Método Construtivo-Interpretativo para a pesquisa em Educação, sobretudo no que se refere aos processos de aprendizagem escolar. Ambos foram elaborados por Fernando González Rey em sua proposta teórica para o estudo da subjetividade, em uma perspectiva cultural-histórica. Embora a pesquisa qualitativa tenha avançado em termos de metodologia nas ciências humanas, a prevalência de um imaginário positivista na investigação científica qualitativa perdurou, sem muitas mudanças. Nesse sentido, dentre as contribuições que serão debatidas, cita-se, sobretudo, a premência de conceber a epistemologia como uma ferramenta de pensamento crítico para o fazer científico na pesquisa qualitativa, ao buscar abranger a dimensão histórica, cultural e subjetiva dos fenômenos humanos. Para tanto, é apresentado um estudo de caso, realizado em uma escola pública brasileira, em que se objetivou compreender processos subjetivos produzidos pelo participante no curso das suas dificuldades escolares, tendo em conta a utilização dos pressupostos teórico, epistemológico e metodológico supracitados. Como instrumentos, foram utilizados dinâmica conversacional, produção de texto e complemento de frases. Os resultados apontam para as contribuições do fazer investigativo por essa perspectiva, que possibilitaram abarcar a análise das complexas tramas sociais, individuais, históricas e culturais, a partir do modo como emergiram nas produções subjetivas do aluno frente às suas dificuldades, dimensões geralmente não abarcadas sem que uma exclua a outra no estudo dos processos educativos pelo caminho científico caracterizado como qualitativo.
Palavras-chave: epistemologia qualitativa, aprendizagem escolar, subjetividade, educação básica, método construtivo-interpretativo
Resumen: El objetivo de este artículo es discutir algunas de las contribuciones de la Epistemología Cualitativa y del Método Constructivo-Interpretativo a la investigación en Educación, especialmente en lo que se refiere a los procesos de aprendizaje escolar, elaboradas por Fernando González Rey en su propuesta teórica para el estudio sobre la subjetividad, desde una perspectiva cultural-histórica. Aunque la investigación cualitativa ha avanzado en términos metodológicos en las humanidades, la prevalencia de un imaginario positivista en la investigación científica cualitativa ha persistido, sin muchos cambios. En este sentido, entre las aportaciones que se debaten, cabe destacar, sobre todo, la urgencia de concebir la epistemología como una herramienta de pensamiento crítico para la investigación cualitativa, al pretender abarcar la dimensión histórica, cultural y subjetiva de los fenómenos humanos. Para ello, se presenta un estudio de caso, realizado en una escuela pública brasileña, en el que se pretende comprender procesos subjetivos producidos por el participante en el curso de sus dificultades escolares, teniendo en cuenta el uso de los supuestos teóricos, epistemológicos y metodológicos antes mencionados. Se utilizaron como instrumentos la dinámica conversacional, la producción de textos y complemento de frases. Los resultados apuntan a los aportes de la investigación desde esta perspectiva, que permitió abarcar el análisis de complejas tramas sociales, individuales, históricas y culturales, a partir de la forma en que surgieron en las producciones subjetivas del estudiantado frente a sus dificultades, dimensiones generalmente no cubiertas sin que una excluya a la otra en el estudio de los procesos educativos en el camino científico caracterizado como cualitativo.
Palabras clave: epistemología cualitativa, aprendizaje escolar, subjetividad, educación primaria, método constructivo-interpretativo.
Abstract. This article aims to
discuss some of the contributions of Qualitative Epistemology and the
Constructive- Interpretative Method to research in Education,
especially with regard to school learning processes. Both were
elaborated by Fernando González Rey for his theoretical proposal for
the study of subjectivity, in a cultural- historical perspective.
Although qualitative research has advanced in terms of methodology in
the humanities, the prevalence of a positivist imaginary in qualitative
scientific research has persisted, without many changes. In this sense,
among the contributions that will be debated, it is worth mentioning,
above all, the urgency of conceiving epistemology as a tool of critical
thinking in qualitative research, when seeking to cover the historical,
cultural and subjective dimension of human phenomena. For this purpose,
a case study is presented, carried out in a Brazilian public school, in
which it was aimed to comprehend subjective processes produced by the
participant in the course of his school difficulties, taking into
account the use of the theoretical, epistemological and methodological
assumptions mentioned above. Conversational dynamics, text production
and phrase completion were used as
instruments. The results point to the contributions of doing research
from this perspective, which made it possible to encompass the analysis
of complex social, individual, historical and cultural plots, from the
way they emerged in the subjective productions of the student in the
face of his difficulties, dimensions generally not covered without one excluding the other in the study of educational processes along the scientific path characterized as qualitative.
1 Coordenadora e Docente de cursos de Pós-graduação do Centro Universitário Euroamericano de Brasília, Brazil. Doutoranda da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, Brasil. Dirección electrónica: raquelunieuro@gmail.com Orcid https://orcid.org/0000-0003-2579-564X
2Psicóloga, Mestra e Doutoranda da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, Brasil. Dirección electrónica: andmartins18@hotmail.com Orcid https://orcid.org/0000-0002-6012-9434
Artículo recibido: 29 de octubre, 2019
Enviado a corrección: 1º de abril, 2020
Aprobado: 27 de abril, 2020
Diferentes representações acerca do homem e de seus fenômenos nas ciências foram, em grande parte, influenciadas pelo racionalismo e empirismo, que teve no iluminismo, no século XVIII, o seu apogeu. Pode-se pensar que a ênfase na visão técnico-instrumental resultante, em parte, dessa proeminência empírica, favoreceu a destituição do lugar central do homem e seus processos na produção do saber no contexto científico, o que de certa forma contribuiu para o surgimento de propostas como o positivismo no século XIX (González Rey, 1997).
A concretização positivista esteve associada a uma visão única de ciência que, “regida por princípios universais, sacralizou e ideologizou o caráter empírico, instrumental e objetivo da comunidade científica” (González Rey e Mitjáns Martínez, 2016, p. 6), marcando o rumo que o legado científico tomaria nas ciências humanas.
Diante disso, fizeram-se necessárias propostas alternativas, que não apenas questionassem o positivismo, mas que viessem a proclamar um conhecimento específico e diferenciado às ciências humanas (Chizzotti, 2003). A emergência dessas novas representações teóricas e metodológicas na Educação veio a ocorrer no século XX, alterando o cenário investigativo mediante abordagens críticas que questionavam posicionamentos empiristas descritivos (Gatti, 1987). Várias foram as tendências nascidas na filosofia e nas ciências sociais com esse propósito.
Não obstante os esforços, essas tendências antipositivistas não foram capazes de avançar de modo a romper decisivamente com o positivismo (González Rey, 1997). Isso se deu uma vez que a ausência de clareza e da discussão a respeito das bases epistemológicas e ontológicas, no contexto das pesquisas, nas ciências humanas contribuiu para o pouco questionamento dos diferentes tipos de métodos que iam sendo propostos como alternativas. Estes, por vezes, baseavam-se nos princípios positivistas, mesmo muitos deles estando situados na vertente qualitativa (Japiassu, 1982; González Rey e Mitjáns Martínez, 2016). Inclusive, alternativas metodológicas que foram sendo propostas para a solução de impasses, por exemplo, a pesquisa “quali/quanti”, permaneceram atribuindo um lugar secundário à importância de um debate epistemológico. Ou seja, as variações foram sendo enfatizadas apenas a nível metodológico instrumental, com o objetivo de diferenciar superficialmente as formas de fazer pesquisa (González Rey e Mitjáns Martínez, 2017a, 2017b).
Nesse sentido, uma definição positivista de ciência influenciou muitas das produções do conhecimento nas ciências humanas, culminando em um certo objetivismo e instrumentalismo metodológico (Oliveira, 1996). Uma vez enfatizada a eficácia incontestável dos métodos das ciências naturais, por sua rigorosidade e objetividade, unido à ausência de uma base ontológica epistemológica consistente, o empirismo acabou sendo identificado como um caminho confiável à produção científica nas ciências humanas, tanto em Psicologia como em Educação, as quais, por sua vez, se sustentavam fragilmente sob múltiplas bases (González Rey, 2005).
Os impactos dessa apropriação científica natural às pesquisas humanas e sociais despertou a atenção de diversos estudiosos, incluindo os que estão imbuídos na análise das pesquisas em Educação no Brasil, como Brandão (1992). Dentre essas preocupações, uma esteve relacionada à ideia de que a pesquisa nessa área do saber se reveste de algumas características específicas, por referir-se a um trabalho relativo aos seres humanos, o que requer parâmetros metodológicos próprios (Gatti, 2012). Além disso, trata-se de uma área que lida com fenômenos históricos, culturais e sociais, remetendo à sua dinamicidade e mutabilidade (Gamboa, 2012). Nesse sentido, pesquisar os fenômenos de maneira isolada, afastando-os de uma articulação à realidade concreta daquilo que está sendo investigado, é um movimento incabível no âmbito da pesquisa em Educação.
Outra questão a pontuar nessa discussão é a ênfase atribuída ao dado no momento empírico como verificação de um conhecimento fidedigno, culminando em certo aprisionamento do processo da pesquisa a essa leitura reificada do real (Mendes, 1983; González Rey e Patiño Torres, 2017). Nesse processo, a teoria e o momento em campo passaram a ser naturalizados como dois momentos desconexos, uma vez que o dado deveria apenas comprovar a teoria, e não contestá-la (Bourdieu, 1989; González Rey e Mitjáns Martínez, 2016).
Assim, outra problemática associada à apropriação positivista, por um lado decorrente dessa separabilidade teoria-campo, e por outro pela incapacidade dos psicólogos e educadores em seu manuseio, foi a pouca atenção atribuída às questões teóricas. Pode-se pensar, ademais, que nessa concepção passiva de ciência, quase nenhuma teoria era produzida no momento da investigação, perpetuando um modelo de fazer pesquisa que pouco veio a contribuir com novas perspectivas que contestassem as teorias hegemônicas existentes (González Rey, 2005; González Rey e Mitjáns Martínez, 2017a).
Em razão do exposto, tem-se em conta a importância de promover reflexões concernentes aos processos envolvidos na produção do conhecimento sobre os fenômenos humanos na Educação e na Psicologia, considerando a inclusão de uma perspectiva epistemológica e metodológica própria do seu fazer científico, como defendido por diferentes autores (Bachelard, 1993; Feyerabend, 1986; Polanyi, 1970; González Rey, 1997).
A importância da presente investigação se associa ao fato de que muitas das pesquisas qualitativas ainda se mostram comprometidas epistemologicamente com o tradicional paradigma positivista, e terminam por reduzir, muitas vezes, os métodos que utilizam a um conjunto de receitas e de técnicas estabelecidos à priori. Isso se verifica, pois, a epistemologia não é utilizada como ferramenta de pensamento crítico sobre possíveis falhas da pesquisa qualitativa.
Assim, como possibilidade de avançar na importância de promover um delineamento harmônico entre método e epistemologia, este artigo tem como objetivo explorar contribuições da proposta da Epistemologia Qualitativa e do método construtivo- interpretativo, delineados para o estudo da subjetividade em uma perspectiva cultural- histórica, de González Rey (1997, 2005, 2017), a partir da discussão de um caso. Trata-se de uma possibilidade de introduzir uma alternativa às propostas existentes na própria investigação qualitativa.
Desse modo, as premissas epistemológicas e metodológicas que norteiam a presente investigação se diferenciam do fazer científico qualitativo tradicional, como será possível compreender no que é apresentado no tópico dedicado à discussão metodológica. Não se faz necessária a referência à elaboração de um problema de pesquisa prévio, como condição de ir a campo. Da mesma forma, as hipóteses ou as perguntas de investigação não são concepções estabelecidas anteriormente à imersão do pesquisador em campo, mas são construídas por ele no curso de sua interação com o pesquisado.
Assim, o artigo está dividido da seguinte maneira. Em um primeiro momento, como fundamentação teórica, são apresentados os pressupostos Epistemologia Qualitativa e o que caracteriza a construção da informação pelo método construtivo-interpretativo nessa perspectiva. Em seguida, com o intuito de explorar o seu valor heurístico às pesquisas em Educação, esse processo de construção teórica será exemplificado por meio de um estudo de caso.
2.1 A Epistemologia Qualitativa e o estudo da subjetividade
Como exposto, apesar de avanços em termos metodológicos nas pesquisas qualitativas nas ciências humanas, a permanência do imaginário positivista dificultou a abertura de novos caminhos rumo a mudanças concretas que possibilitassem um real distanciamento desse imaginário.
No ano de 1997, imerso nesse cenário, Gonzalez Rey propõe a obra Epistemología Cualitativa y Subjetividad, abrindo nova trajetória para o estudo da subjetividade, em uma perspectiva cultural-histórica, apresentada em sua associação a um posicionamento epistemológico e metodológico delineado para o seu estudo (González Rey e Mitjáns Martínez, 2017a). O autor lançou uma perspectiva alternativa ao formato científico hegemônico, a Epistemologia Qualitativa, que se apoia no método construtivo-interpretativo, em sua articulação à Teoria da Subjetividade, implicando em uma nova ruptura epistemológica no âmbito das ciências psicológicas (González Rey, 1997, 2005, 2017; González Rey e Mitjáns Martínez, 2017a).
Algo a ressaltar foi que González Rey, ao propor a Epistemologia Qualitativa, logrou apontar que a diferença entre o quantitativo e o qualitativo “não era apenas metodológica, mas epistemológica” (González Rey e Mitjáns Martínez, 2017a, p. 8). De modo oposto às noções indutivas, o desenvolvimento dessa proposta visou avançar em relação ao instrumentalismo, o controle sistemático e a inflexibilidade metodológica na produção do conhecimento. Com isso, favoreceu abranger fenômenos humanos complexos que emergem em tramas culturais e sociais, estudados a partir das produções subjetivas da pessoa (González Rey, 1997, 2005). Trata-se, portanto, de um distinto marco epistemológico que favorece avançar em relação às concepções naturais, a partir de uma aproximação diferenciada do objeto, tendo em conta a sua complexidade.
Os três fundamentos nos quais se apoia essa proposta epistemológica são: a natureza construtivo-interpretativo do conhecimento, que, por sua vez, é uma produção e não uma acomodação linear do externo; o aspecto central do diálogo no decorrer da investigação; e a possibilidade de incluir o singular na produção do saber, considerando a legitimidade que oferta ao modelo teórico resultante da investigação (González Rey, 1997, 2005).
Diferentemente da perspectiva tradicional empírica, em que o método é uma formulação apriorística, no método construtivo-interpretativo a informação é construída pelo pesquisador no decorrer da pesquisa, principalmente considerando a relação dialógica com o participante, o que favorece a construção teórica durante o campo (González Rey e Patiño Torres, 2017).
Esse processo construtivo é desenvolvido a partir da organização reflexiva do pesquisador, de modo que o seu protagonismo envolve articular os múltiplos sistemas de significados, o processo teórico, a interpretação e a imaginação enquanto realiza a pesquisa (González Rey e Mitjáns Martínez, 2016). González Rey (2005) denominou esta articulação entre as reflexões do pesquisador e o momento da pesquisa como lógica configuracional.
As articulações supracitadas, que vão sendo tecidas pelo pesquisador em relação aos acontecimentos e expressões que aparecem no âmbito da pesquisa se reúnem na formulação de indicadores, que são elementos hipotéticos. Nesse sentido, diferentemente da noção de coleta de dados, o que ocorre nessa proposta é a construção desses indicadores no âmbito da pesquisa, que adquirem relevância na construção dos conceitos no contexto da construção da informação.
A congruência de um conjunto de indicadores leva à geração de hipóteses e, nesse processo, a construção do modelo teórico vai sendo organizado, no qual se reúnem as conclusões da investigação (González Rey e Mitjáns Martínez, 2016). Essas conclusões jamais deverão traduzir um conhecimento universal, a partir de prescrições estáticas. É dessa forma que a produção de conhecimento, por essa vertente, será um processo de construção ativa, criativa, em relação ao novo, gerando o que González Rey (1997) propõe como zonas de sentido sobre o problema investigado.
Devido ao caráter dialógico relacional dos processos subjetivos, estudá-los no curso da pesquisa requer criar um espaço social, comunicativo e afetivo, para a sua emergência durante as interações na pesquisa (González Rey e Mitjáns Martinez, 2016). Ademais, nesse momento é que se busca criar um clima inicial de modo a promover segurança e um vínculo entre pesquisador e participante para o estabelecimento do cenário social da pesquisa (González Rey, 2005). É nesse sentido que esta proposta de pesquisa em campo envolve a inseparabilidade entre investigação e ação profissional (González Rey, Goulart e Bezerra, 2016), podendo a pesquisa resultar em processos de desenvolvimento ao participante. Igualmente, rompe-se com a lógica pergunta-resposta, pois, os instrumentos sempre têm um caráter dialógico e conversacional, e são pensados e introduzidos pelo pesquisador no decorrer da pesquisa, considerando a sua relevância para o estudado, ou seja, os instrumentos não são escolhidos antes do início da pesquisa para depois serem aplicados.
Em suma, considerando os três princípios citados, norteadores da pesquisa pela perspectiva em pauta, tem-se em conta as contribuições significativas da Epistemologia Qualitativa para reflexões alternativas sobre o que caracteriza a pesquisa qualitativa em Psicologia e em Educação, de modo a compreender que o ato de pesquisar está para além da simples coleta de dados, e envolve a dialogicidade, a capacidade reflexiva do pesquisador e o desenvolvimento do participante.
Os conceitos propostos pela Teoria da Subjetividade possuem uma gênese histórica, cultural e social, e são: subjetividade (individual e social), sentidos subjetivos, configurações subjetivas, agente e sujeito (González Rey e Mitjáns Martinez, 2017a; González Rey, 2018). Faz-se relevante mencionar que eles não remetem às noções de assimilação da realidade externa em que emergem. Ademais, jamais se definem à priori, mas são construídos pelo pesquisador no contexto da pesquisa.
Subjetividade se define como unidades que integram processos emocionais simbólicos, representadas pelo conceito de sentidos subjetivos, compreendendo um novo tipo qualitativo de processo, que emerge na cultura (González Rey, 2018). Essa compreensão da subjetividade engloba a organização entre sentidos subjetivos e configurações subjetivas, que emergem ao vivenciar as diversas experiências de vida. Vale ressaltar que ambos os conceitos são dois momentos no processo de subjetivação.
A categoria configurações subjetivas representa a integração de um fluxo menos mutável de sentidos subjetivos congruentes entre si que, uma vez configurados, culminam em fontes geradoras de novos sentidos subjetivos, mais congruentes entre si frente à experiência. O conceito de configuração subjetiva possibilita o estudo da natureza subjetiva da dificuldade de aprendizagem, bem como dos processos subjetivos que perpassam a sua superação, de modo que se faz relevante ressaltar a importância do seu estudo como base para a orientação das práticas educacionais para com a criança (Mitjáns Martínez e González Rey, 2017).
Para a investigação em Educação, estes conceitos possibilitam avançar, entre outros aspectos:
- Em relação à atribuições apriorísticas, causais e deterministas dos posicionamentos de um aluno em sala de aula, uma vez que a subjetividade contribui com a concepção de que em um posicionamento se entrelaçam diversos sentidos subjetivos produzidos em outras esferas da vida de experiências da criança, de modo que sua emergência não responde linearmente aos aspectos momentâneos e contextuais. Desse modo, por esta perspectiva, nenhum aspecto fora da criança no contexto escolar poderá ser tomado por si só enquanto determinante de um comportamento ou de seu desenvolvimento naquele espaço (Mitjáns Martínez; González Rey, 2017).
- Na articulação entre o social e o individual no estudo dos processos de aprendizagem da criança na escola, sem que um exclua o outro na produção do conheciment
- Em uma aproximação singularizada da criança com dificuldades de escolarização, sem recorrer à patologização de suas dificuldades, pois, cada configuração subjetiva da aprendizagem é singular.
A partir dessa aproximação, compreende-se que o estudante em sala de aula está, a todo tempo, (re)organizando suas experiências subjetivamente a partir do seu sentir, em que o passado, presente e o futuro se entrelaçam enquanto possibilidades de viver singularmente a experiência de aprendizagem. Nesta acepção, portanto, as dificuldades de escolarização manifestadas pelo estudante são marcadas por processos subjetivos, que implicam sentidos subjetivos que expressam experiências vividas em outros momentos e áreas de vida (Mitjáns Martínez e González Rey, 2017).Como explorado no tópico anterior, o presente estudo de caso foi realizado apoiando- se nos pressupostos da Epistemologia Qualitativa e da metodologia construtivo- interpretativa, desenvolvidos por González Rey (1997, 2005a). Ao propor a Epistemologia Qualitativa, o autor teve o intuito de ressaltar que a diferença entre o quantitativo e o qualitativo “não era apenas metodológica, mas epistemológica” (González Rey e Mitjáns Martinez, 2017a, p. 8). De igual modo, visou romper com algumas das compreensões sobre a leitura da informação na pesquisa qualitativa, em que prevalecia a descrição, a partir da observação direta, como fonte legítima na produção do conhecimento.
Alternativamente à perspectiva tradicional empírica, em que o método é uma formulação apriorística, no método construtivo-interpretativo a informação é construída pelo pesquisador durante todo o processo de pesquisa, principalmente pela relação dialógica estabelecida com o pesquisado, favorecendo a construção teórica no momento do campo (González Rey, 2005). No processo de construção da informação, os indicadores, que são elementos hipotéticos, vão sendo construídos frente a um conjunto de significados articulados por parte do pesquisador, tendo em conta a informação obtida no contexto em que ela aparece. A informação é proveniente da interação do pesquisador com o participante e com um contexto mais amplo, e jamais será resultado linear da fala e da escrita (González Rey e Mitjáns Martinez, 2017a).
O levantamento de hipóteses não constitui uma formulação prévia que deve obter comprovações no campo. Nesta metodologia, as hipóteses vão ganhndo força no decorrer da pesquisa, e resultam da articulação de diversos indicadores que convergem em uma mesma direção de significados. Frente a essas considerações, o que se concebe como modelo teórico por essa perspectiva epistemológica, que seria o resultado sempre inacabado da pesquisa, se difere dos processos que vêm caracterizando a investigação qualitativa nas ciências humanas, que enfatiza a coleta de dados em um momento e a produção do saber sobre esses dados posteriormente. Deste modo, essa diferenciação relaciona-se à concepção do campo, que passa a ter nova significação, sendo um momento de produção teórica e não um processo apartado que valida o teórico (González Rey, 1997).
Ser estudante do Ensino Fundamental Anos Iniciais, da Rede Pública de Ensino que apresentasse grande comprometimento em seu processo de escolarização foi o critério adotado para a escolha do participante. Com base nesse critério, a pesquisadora escolheu uma escola situada numa região administrativa do Distrito Federal, onde relatou aos professores o seu interesse em estudar situações de fracasso escolar. Foram apontadas situações de cinco estudantes de uma única turma que apresentavam histórico de repetência e muitas dificuldades em seu processo de escolarização, sem, contudo, mencionar o nome dos estudantes.
Baseado no objetivo de pesquisa que respaldou a construção deste artigo, a pesquisadora passou a realizar observações, na sala de aula dos estudantes mencionados, por algumas horas diárias na primeira semana de pesquisa. Na segunda semana, a pesquisadora se aproximou dos estudantes que cumpriam os critérios pré-estabelecidos, com o intuito de interagir e realizar dinâmicas conversacionais, objetivando selecionar dois estudantes para a pesquisa. Semanalmente, durante um semestre letivo, a pesquisadora passou a acompanhar os estudantes escolhidos em suas atividades escolares no contexto escolar, o que possibilitou, com o uso do mencionado método construtivo-interpretativo, o desenvolvimento de uma análise processual cuidadosa das informações que iam emergindo naquele contexto, cuja análise continuou nos próximos seis meses subsequentes ao período de observação.
Dionísio, um dos estudantes escolhidos para o presente estudo, foi selecionado, à época, considerando o vínculo que estabeleceu com a pesquisadora nas primeiras dinâmicas conversacionais, de forma que essa abertura que veio espontaneamente do participante possibilitou a criação do cenário social da pesquisa, a partir do qual um clima afetuoso e amistoso passou a prevalecer. O estudante foi apontado por seu professor como um aluno complicado, que apresentava diversos desafios de comportamento no contexto escolar e dificuldades de aprendizagem e que possuía um histórico escolar de muitos fracassos, baixo rendimento, constantes advertências e mudanças frequentes de escola.
Por sua vez, seu ambiente familiar era igualmente bastante conflituoso, fato evidenciado desde a primeira conversa com o professor quando relatou que Dionísio foi levado aos três anos de idade para residir com sua avó paterna em outro estado brasileiro, devido à separação de seus pais, com a promessa de que ele voltaria dentro de seis meses, o que ocorreu somente aos onze anos de idade. Enquanto permaneceu sob os cuidados da avó, Dionísio relatou que passava grande parte de seu tempo perambulando pelas ruas, ocasionando, assim, inúmeras desavenças entre ambos, agravadas pelo seu desinteresse no que se referia aos assuntos relacionados à escola.
Após retornar para o Distrito Federal, sua convivência familiar continuou conflituosa, principalmente, devido aos desentendimentos entre ele e a sua madrasta com quem passou a residir. De tal modo, em relação aos seus estudos, continuou apresentando as mesmas dificuldades escolares, conforme mencionado, tendo sido expulso de outras duas escolas, sendo aquela em que estava matriculado no momento da pesquisa, a sua terceira escola.
Vale mencionar que se trata de uma pesquisa realizada após aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa, bem como após aprovação dos pais, que assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Os instrumentos vão sendo refletidos e construídos ao longo da pesquisa, conforme mencionado, considerando o objetivo estudado, os elementos que vão emergindo nesse processo, e demais recursos utilizados que vão abrindo caminhos para novas indagações e reflexões no curso da pesquisa. Os instrumentos por essa perspectiva sempre possuem um caráter dialógico e conversacional, assim como os utilizados no estudo, tais como:
a) Dinâmica conversacional: refere-se a um processo dialógico que ocorre durante as interações com o participante, de modo que a sua utilização perpassa os demais instrumentos. Essa proposta diferencia-se do formato hegemônico de entrevistas, no sentido de que a intenção não é a de colher respostas do participante, mas de promover um momento dialógico em que ambos, pesquisador e participante, estão emocionalmente implicados (González Rey, 2005). A pauta dessa dinâmica será sempre em conformidade com aquilo que é relevante para o pesquisado. Em sentido semelhante, a espontaneidade dessa interação é fator primordial para a emergência de sentidos subjetivos no âmbito do diálogo, favorecendo a sua construção por parte do pesquisador.
b) Produção de texto: Eu / Eu e minha escola / Eu e minha família: o intuito dessa proposta de instrumento esteve relacionada a abranger novas compreensões acerca do envolvimento emocional do participante com a escola, a família e como suas relações nesses contextos são subjetivamente configuradas. Ao provocar produções escritas singulares acerca de situações que envolviam a rotina do aluno, teve-se em consideração a possibilidade de trazer informações complementares aos outros instrumentos utilizados.
c) Complemento de frases: trata-se de um instrumento elaborado a partir de indutores curtos que são completados pelo participante, o que contribui com diversas opções de construção qualitativa frente ao diálogo com o participante (González Rey, 2005).
Nessa perspectiva, não concebemos a discussão do caso como um tópico denominado de ‘resultado’ da pesquisa, mas como um processo de construção da informação, tratando- se de algo inacabado. À título de ilustração das implicações da Epistemologia Qualitativa e do método construtivo-interpretativo para a pesquisa em Educação, serão apresentados neste tópico fragmentos de trechos construídos a partir do estudo de caso, por meio do qual será discutida a construção do conhecimento por essa perspectiva.
Dionísio encontrava-se na terceira escola desde que retornou para o DF, pois outras duas o expulsaram por problemas de comportamento e dificuldades de socialização. Era tido como relapso e que pouco frequentava a escola. De porte desse histórico, desacreditado, a escola em que estava no momento da pesquisa já o concebia como um provável repetente.
Nas primeiras semanas de interações com Dionísio, diversos assuntos foram sendo abordados durante as dinâmicas conversacionais com a pesquisadora. O assunto central que o participante trazia espontaneamente era relacionado às dificuldades que enfrentava em seu meio familiar, bem como com os estudos. Expressava momentos que o marcaram em um passado conflituoso, incluindo diversos relatos sobre a família e o medo que tinha de reprovar novamente aquele ano letivo. A centralidade dessas queixas pode ser exemplificada pelo seguinte trecho de informação, que se refere a uma parte de sua produção textual sobre “Eu e minha família”: “A minha família é tipo uma família de doido. Minha mãe (madrasta) fica gritando comigo toda hora e o dia inteiro quando a gente está em casa. Eu queria que isso acabasse na minha vida” (Dionísio).
Em outro momento, durante o diálogo com a pesquisadora sobre essa mesma produção, Dionísio expressou: “Lá em casa ficam gritando, aí tenho que estudar e não consigo. Depois quando vou fazer prova, fico lembrando das brigas. Fico atrapalhado e não consigo lembrar de nada, aí vem a nota ruim” (Dionísio).
Em ambos os trechos de informação, percebe-se que Dionísio demonstra certa tristeza, incômodo e ausência de perspectivas em relação à mudanças concretas em sua realidade familiar e escolar, mas, concomitantemente, não logra refletir sobre possíveis alternativas frente às consequências que isso parece lhe causar, como quando relaciona linearmente problemas familiares e a sua dificuldade em obter bons resultados nas provas. Essa associação pode sugerir uma certa dificuldade do estudante em gerar um caminho alternativo de produção subjetiva, que pudesse efetivamente contribuir com a emergência de novos recursos subjetivos na forma de se posicionar frente a essas situações desafiadoras.
Essa mesma dificuldade de assumir as suas responsabilidades enquanto estudante, jstificando o seu fracasso aos fatores externos, também se faz presente na seguinte expressão: “Quando vivia com minha avó eu vivia assim, meio na rua, chegava tarde em casa. Minha vó não era muito fácil não. Sei lá, eu vivia no mundo da rua, eu vivia jogado. Aí reprovei, pois eu não ia para a escola não, e minha avó não ligava” (Dionísio).
O fato de Dionísio atribuir a sua ausência de compromisso escolar às omissões de cuidado por parte da avó, revela novamente uma tendência do estudante em colocar-se como refém de sua situação familiar, de modo que é possível pensar acerca de uma dificuldade em assumir as rédeas de seus desafios escolares para si.
Essas construções inicias, que revelavam um posicionamento passivo do participante em relação às situações de sua vida, levou a pesquisadora a tecer um indicador relacionado a um processo subjetivo que emergia recorrentemente em suas expressões, associado a justificação das suas dificuldades escolares à sua desorganização familiar, e não a si mesmo. Além disso, esse fenômeno também poderia sugerir certa estagnação subjetiva, de modo que Dionísio não estava conseguindo gerar novos sentidos subjetivos frente às situações que vivenciava em seu cotidiano. Essa paralização terminava por dificultar o empreendimento de novos avanços em seus processos do aprender.
Esse mesmo modo de se posicionar uma vez mais emerge nos seguintes trechos de informações, que se referem a algumas de suas respostas ao complemento de frases:
Não consigo: estudar quando estou em casa; Minha família: não me ajuda com os estudos; Meu maior medo: não passar de ano.
Nestes trechos, Dionísio atribui os desafios que enfrenta nos estudos à ausência de suporte por parte da família, e ao seu ambiente familiar que, segundo ele, não favorece o seu engajamento. Além do mais, em nenhum momento Dionísio demonstrou expectativas de provável mudança àquela situação em que se encontrava. Igualmente, o conjunto de informações tecidas até aqui, remetem a certa dependência de Dionísio em relação a uma mudança em sua realidade familiar para que haja transformação em sua realidade escolar.
Interessante compreender como, em expressões variadas, o estudante carregava a mesma dificuldade em produzir alternativas subjetivas aos conflitos família-estudo. Por sua vez, isso parecia culminar em um constante desinteresse de sua parte por estudar e modificar aquelas situações estagnadas, a partir de ações próprias. Toda essa trama, viabiliza a construção de um indicador, em consonância ao anterior, relacionado às dificuldades até então demonstradas pelo estudante em produzir processos subjetivos alternativos frente aos desafios que enfrentava até aquele momento de sua vida.
Essas construções, que convergem em um mesmo sentido, possibilitam refletir que o modo como Dionísio conduzia suas diferentes experiências, sem lograr posicionamentos que efetivamente culminariam em rotas alternativas ao seu desenvolvimento, poderia estar situado na base de uma configuração subjetiva predominante naquele seu momento de vida, que se expressa nas suas dificuldades escolares e em edificar novos posicionamentos. Essa hipótese, que se apoia nos indicadores levantados, possibilitou à pesquisadora refletir sobre ações desenvolvidas pelo professor que possivelmente pudessem vir a favorecer novas reflexões ao participante, considerando a estagnação subjetiva em que se encontrava frente aos desafios mencionados, o que terminava por impactar o seu desenvolvimento escolar.
De posse das construções exploradas até aqui no curso da pesquisa, e uma vez inserida em sala de aula e na trama diária das vivências de Dionísio, a pesquisadora observou que o professor demonstrava muito interesse em ajudar o estudante. Inclusive, relatou que, ao ser informado da sua situação de vida familiar e escolar, convidou os responsáveis para juntos elaborarem estratégias que pudessem contribuir para as mudanças necessárias na vida daquele estudante.
Uma das estratégias utilizada em sala de aula foi atribuir ao estudante a responsabilidade de ser monitor de outro colega, o que somado a outros aspectos possibilitou um conjunto de vivências que propiciou um ambiente social afetivo e dialógico favorável em sala de aula. Nesse sentido, podemos conjecturar que a implicação de maneira ativa do participante, em que estava envolvida a sua emocionalidade, pode ter sido base para novas expressões subjetivas (GONZÁLEZ REY; MITJÁNS MARTÍNEZ, 2017), pois, ao sentir-se acolhido, provavelmente, Dionísio passou a compartilhar mais do seu mundo subjetivo e, no âmbito dessa relação dialógica, novos processos subjetivos relacionados a novas maneiras de agir com relação aos estudos podem ter vindo a emergir. Conforme apontam González Rey e Mitjáns Martínez (2017), todo diálogo subjetivo favorece aos que dele participam seguir refletindo sobre o dialogado, o que é uma característica de um sistema dialógico.
A partir de um novo clima social em sala de aula, as aproximações entre Dionísio e o professor foram se tornando cada vez mais frequentes, uma vez que havia um ambiente propício para que o estudante pudesse se expressar, e sempre que possível, o professor ressaltava aspectos positivos dos posicionamentos de Dionísio, que passaram a ser mais atuantes e engajados naqueles momentos. Esse modo ativo do professor atuar, por meio do qual buscou assumir as rédeas da situação, fortaleceu um vínculo e culminou em uma importante abertura de espaço dialógico entre ele e Dionísio, que começava a dar resultados no despertar do interesse do estudante por sua aprendizagem.
Certa vez, em um dos momentos interativos com o estudante, Dionísio disse: “Eu gosto de estudar muito e gosto mesmo do meu professor. Ele é muito legal comigo. Estou gostando mais de estudar agora” (Dionísio). Pela primeira vez, o estudante parecia iniciar provável mudança em relação ao seu gosto por estudar, associada a uma relação de afeto e confiança que passava a prevalecer entre ele e o professor. Algo a ressaltar deste trecho também é que o estudante deixa de mencionar seus problemas familiares como um impeditivo de novos avanços, o que sugere a produção de reflexões alternativas relacionadas à sua capacidade em mudar aquele cenário anteriormente estagnado. Esse fenômeno se fez igualmente presente nas seguintes expressões, proferidas durante uma dinâmica conversacional com a pesquisadora em sala de aula:
O meu sonho é ser Doutor quando eu crescer. Gostaria de ajudar pessoas carentes se eu fosse o Presidente do Brasil. Eu não deixaria as pessoas na rua nem com fome. Eu ajudaria o Brasil inteiro quando eu vejo as pessoas sentadas na calçada. Um dia esse sonho realizará (Dionísio).
Neste trecho Dionísio vislumbra a possibilidade de um futuro, além de almejar a concretização desse percurso. De maneira similar ao trecho anterior, pode-se pensar que o estudante passa a referir a si mesmo e à possibilidade de edificar um caminho concreto de conquistas em sua vida, aludindo novamente a ideia do despertar relacionado à própria capacidade.
Nesse
sentido, é possível tecer um indicador de que Dionísio passava por um
processo de movimentação de sentidos subjetivos, considerando sobretudo
a relação estabelecida com o professor, com o colega, e a prevalência
de um novo clima social da sala de aula. Pode-se conjecturar que essa
movimentação se caracterizava pelo despertar de seu protagonismo, em que novos sentidos subjetivos eram produzidos, associados à crença em si
mesmo, e à sua capacidade em assumir as rédeas do seu desenvolvimento,
sem esperar que as mudanças viessem de fora, ou seja, do seu meio
familiar, como fazia referência no início da pesquisa.
Em consonância ao exposto, Dionísio expressou em suas respostas ao complemento de frases:
Tenho certeza que: eu vou passar de ano; O tempo mais feliz: quando estou estudando; Na escola: estou bem; Fracassei: no primeiro bimestre; Estou melhor: no segundo e no terceiro bimestre.
Nesse mesmo sentido, Dionísio assim expressa em relação às suas notas escolares naquele momento: “A nota máxima lá na sala é 30. Aí eu tiro 16, 25, 26. Isso aí não é nota não. Nota para mim é 30, né?” (Dionísio). Nesse trecho, o aluno afirma, explicitamente, a certeza de seu progresso escolar, remetendo à disposição de novos alcances em seus processos de aprendizagem por meio de esforço próprio. É notável como esse posicionamento se expressa em diversos momentos em que Dionísio reflete sobre os temas escolares. Desse modo, é interessante conjecturar como o novo espaço social, dialógico, criado pelo professor passou a ser favorecedor de novos momentos qualitativos na relação do estudante com o seu aprender.
Em outro momento, igualmente expressou: “Eu gostaria que ele fosse o meu professor na 5ª série. Eu nunca vou esquecê-lo em minha vida” (Dionísio). A forma como Dionísio alude à presença do professor em sua vida, como abordado anteriormente, e as mudanças que foram ocorrendo no curso da relação dialógica edificada entre eles, possibilita construir um indicador associado ao fato de que essa relação, uma vez configurada subjetivamente, constituiu a base de novos processos subjetivos à Dionísio, associados à sua implicação, à novos posicionamentos frente às atividades e à motivação nos estudos. Sobre isto, faz-se relevante mencionar o que afirmam Mitjáns Martinez e González Rey (2017, p. 142): “Experiências e influências que adquirem potencial valor para o desenvolvimento subjetivo são aquelas que são subjetivadas, aquelas em relação às quais se geram sentidos subjetivos”.
As expressões que seguiam revelando uma nova postura em relação à crença na sua capacidade de aprender e um crescente otimismo associado às possibilidades de seu desenvolvimento, possibilitam a construção de uma hipótese associada à emergência de uma nova configuração subjetiva da relação entre Dionísio e a escola, que integrava sentidos subjetivos relacionados à sua força de vontade, à determinação, à perseverança e à alegria em seus estudos, que passaram a predominar. Além do mais, pode-se pensar que a emergência da nova configuração subjetiva da relação entre Dionísio e a escola, conforme hipótese tecida, esteja em estreita conexão com a relação dialógico-afetiva estabelecida entre participante e professor, remetendo à processualidade e recursividade dos processos de desenvolvimento.
Ao final da pesquisa, e daquele ano letivo, Dionísio apresentou bom rendimento escolar, de forma que, não apenas os avanços nos resultados das avaliações escolares foram evidenciados pelo professor em seu relatório, mas, também, seus novos posicionamentos, tais como: tornou-se mais responsável, dedicado e comunicativo. Este fato também foi reconhecido pelo próprio estudante que assim expressou durante uma das dinâmicas conversacionais com a pesquisadora sobre como tinha sido o seu ano escolar: “Antes eu era o pior aluno. Hoje eu sou um dos melhores” (Dionísio).
Além disso, o estudo dos processos subjetivos do estudante tornou possível compreender que a emergência de seus novos posicionamentos no curso da pesquisa, tais como tornar-se mais responsável, dedicado e comunicativo, estavam recursivamente entrelaçados à nova configuração subjetiva que estava em processo de consolidação da relação entre Dionísio e a escola. O estudo desses processos subjetivos, que culminaram em avanços no aprender escolar, somente foi possível pelos pressupostos que caracterizam a pesquisa em campo pela perspectiva da Teoria da Subjetividade de González Rey (2018), que, como explorado, respondem a uma epistemologia e a uma metodologia delineadas especialmente para o estudo da subjetividade.
Os processos subjetivos estudados, que emergiram no curso da pesquisa, e que eram parte dos novos posicionamentos de Dionísio na escola, foram mobilizando a criação de recursos subjetivos ao participante na forma de vivenciar as suas experiências, contribuindo para o processo de seu desenvolvimento subjetivo.
O processo de produção do conhecimento, no caso da subjetividade, requer assumir a dinamicidade de informações, posicionamentos e relações que emergem no curso da investigação, tendo em conta o seu caráter dinâmico, complexo e contraditório. O objetivo dessa proposta, portanto, se distancia de uma representação linear da realidade, e consiste em uma construção teórica, que vai sendo desenvolvida no entrelace entre os indicadores levantados. Estes, por sua vez, contribuem para a elaboração de hipóteses parciais, de modo que ambos vão sendo tecidos frente ao estudado pelo pesquisador no decorrer do momento em campo.
Nessa acepção epistemológica, como compreendido na construção do caso, não há lógica, nem noções teóricas e conceituais anteriores ao início da pesquisa. A produção científica se concretiza durante todo o processo investigativo, a partir do estudo e construção dos sentidos subjetivos, configurações subjetivas e demais conceitos teóricos. Nenhuma conclusão é, portanto, retirada diretamente das informações explícitas, de modo que a capacidade de gerar conhecimento a partir desse tipo de pesquisa reside na qualidade daquilo que a pessoa expressa, unido à interpretação realizada pelo pesquisador.
Por meio do método construtivo-interpretativo, foi possível estudar como a emergência de novos sentidos subjetivos, a partir das relações dialógico-afetivas que foram se concretizando com o professor e com o colega, se desdobraram em posicionamentos que levaram o participante a se implicar nos estudos, contribuindo, assim, para o enfrentamento das dificuldades vivenciadas em sua vida escolar. Logo, foi possível incluir no estudo dos desafios da aprendizagem, elementos do sistema de relações mais próximas do estudante, do seu contexto cultural e social e da sua própria história de vida, a partir do modo como eles emergiram em suas produções subjetivas diante dos diferentes momentos em que atuou e se relacionou no curso da pesquisa. Considera-se, assim, a subjetividade e o seu estudo como possibilidade de análise das complexas tramas sociais, individuais, históricas e culturais, a partir do modo como emergem nas produções subjetivas do estudante.
Nesse sentido, o presente estudo teve o intuito de explorar contribuições heurísticas da Epistemologia Qualitativa e do método construtivo-interpretativo para a pesquisa em Educação e em Psicologia, de modo que, a Teoria da Subjetividade e sua respectiva proposta epistemológica e metodológica, somadas às categorias, possibilitaram compreender diferentes elementos envolvidos no tema da aprendizagem.
A partir do exposto, destacam-se, portanto, alguns dos principais aportes da Teoria da Subjetividade para se estudar o caso Dionísio: a construção dos sentidos subjetivos e configurações subjetivas de Dionísio favoreceram um olhar singularizado às suas dificuldades de escolarização, possibilitando abarcar as diferentes dimensões de suas experiências que perpassavam os seus posicionamentos;
- essa construção favoreceu edificar uma
ação profissional em campo mais condizente com a realidade das
dificuldades do participante, possibilitando-lhe significativos avanços
em seus processos de aprendizagem.-
- incluir a subjetividade o estudo da criança
em sala de aula remete à importância de flexibilizar o olhar para as
suas dificuldades, por abarcar dimensões que são imperceptíveis à
observação direta do educador. Além disso, sua inclusão permite
vislumbrar novos caminhos ao estudante que, mesmo diante dos problemas,
das dificuldades, produz subjetivimente a sua realidade, em que
constantemente podem ser propostas
inúmeras possiblidades de geração de recursos subjetivos para enfrentar
um desafio.
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