Artigo original
Significados da morte para
adultos com câncer assistidos em um hospital oncológico do Brasil.
Silvia Francine Sartor1, Nen Nalú Alves das Mercês2, Mercedes Nohely Rodríguez Torrealba3
1 Enfermeira, Mestrado em Enfermagem, Universidade Federal do Paraná, Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Curitiba, Paraná, Brasil, ORCID: 0000-0002-3270-5916.
2 Enfermeira, Doutora em Enfermagem, Universidade Federal do Paraná, Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Curitiba, Paraná, Brasil, ORCID:
0000-0001-5843-8329.
3 Médica, Mestra em Enfermagem, Universidade Federal do Paraná, Programa
de Pós-Graduação em Enfermagem, Curitiba, Paraná, Brasil, ORCID:
0000-0003-4659-2606.
Información del artículo
Recibido: 07-12-2020
Aceptado: 06-10-2021
DOI:
10.15517/enferm.
actual costa rica (en línea).v0i42.45042
Correspondencia
Silvia Francine Sartor
Universidade Federal
do Paraná
sartorsilviafrancine@gmail.com
RESUMO
Objetivo: Conhecer
os significados da morte para adultos com câncer hospitalizados.
Metodologia: Estudo qualitativo, descritivo, realizado com 27 pacientes em um hospital
oncológico do Brasil. Os dados foram coletados no período de dezembro de 2019 a
março de 2020, com dois instrumentos: perfil sociodemográfico
e clínico do participante e roteiro de entrevista semiestruturada. Utilizou-se
o método de análise de conteúdo de Creswell, após
classificação dos dados por meio do software Iramuteq.
Resultados: Emergiram seis classes, reagrupadas por conteúdo similar, que compuseram
quatro categorias: a morte como mudança de vida e passagem; quando a morte é
melhor que o sofrimento; a expectativa na intervenção divina; e a morte negada
e distanciada.
Conclusão: O significado da morte transita num processo de passagem, mudança de
vida, que causa medo, insegurança e tem em Deus o suporte para o enfrentamento
do adoecimento e do agravamento da doença; no cotidiano hospitalar, aproxima de
sua experiência existencial.
Palavras chave: Atitude-frente-à-morte; Enfermagem; Luto; Morte; Neoplasias;
Serviço-Hospitalar-de-Oncologia
RESUMEN
Significados de la muerte para adultos con cáncer
atendidos en un hospital oncológico de Brasil.
Objetivo:
Conocer el significado de la muerte para personas adultas con cáncer hospitalizadas.
Método:
Estudio cualitativo, descriptivo, realizado con 27 personas de un Hospital de
Oncología de Brasil. Los datos fueron recolectados desde diciembre de 2019 a
marzo de 2020, utilizando dos instrumentos: perfil sociodemográfico y clínico
del participante y guion para entrevistas semiestructuradas. Se utilizó el
método de análisis de contenido de Creswell, previa clasificación de los datos,
mediante el software Iramuteq.
Resultado:
Emergieron seis clases, agrupadas por contenidos similares que conformaron
cuatro categorías: muerte como cambio de vida y paso; cuando la muerte es mejor
que el sufrimiento; la expectativa de la intervención divina y muerte negada y
distanciada.
Conclusión:
El significado de la muerte pasa de un proceso pasajero, de un cambio de vida,
que causa miedo e inseguridad. La persona tiene en Dios el apoyo para afrontar
la enfermedad y su agravamiento, además, la rutina del hospital le acerca a su
experiencia existencial.
Palabras claves: Actitud-Frente-a-la-Muerte; Enfermería;
Muerte; Aflicción; Neoplasias; Servicio-de-Oncología-en-Hospital.
ABSTRACT
Meanings of death for adults with cancer assisted in an oncological
hospital in Brazil.
Objective: To know
the meaning of death for hospitalized cancer adults.
Method: This is a qualitative, descriptive study
carried out with 27 patients at an Oncology Hospital in Brazil. The data were
collected from December 2019 to March 2020 using two instruments: the
sociodemographic and clinical profile of the participant, and a script for
semi-structured interviews. Creswell’s content analysis method was used after
classifying the data using the Iramuteq software.
Results: Six
classes emerged and were grouped by similar content, which made up four
categories: death as a change of life and passage, death is better than
suffering, the expectation of divine intervention, and death denied and
distanced.
Conclusion: The
meaning of death moves from a passing process and a change in life to the
origin of fear and insecurity. Patients have in God the support to
face their illnesses and the worsening of the disease. In the
hospital routine, death brings them closer to their existential experience.
Keywords: Attitude-to-Death;
Nursing; Death; Grief; Neoplasms; Oncology-Service-in-Hospital.
INTRODUÇÃO
A morte é um evento que
suscita pensamentos ambíguos, sentimentos e emoções tanto no indivíduo que está
morrendo quanto naqueles à sua volta1. Também, é o fim das
atividades vitais de um organismo, com a cessação irreversível de toda a
atividade cerebral. Entretanto, para a cultura ocidental, o conceito de morte
se resume a um fim, como se houvesse a perda de tudo que pertence à vida, o
rompimento total dos laços sociais2,3.
Um dos eventos que pode levar
à morte e tornar o pensamento sobre ela mais frequente no dia a dia é o
adoecimento. Este se dá, muitas vezes, pelo diagnóstico de câncer, considerado
na atualidade a doença da morte, mesmo com os avanços da ciência4,5.
Dessa forma, gera reações emocionais significativas, como ansiedade, medo,
insegurança, depressão, entre outras. Mesmo o prognóstico sendo positivo quando
diagnosticado precocemente, a maior parte das pessoas percebe o câncer como uma
“sentença de morte”. Isso se deve por ser conhecida como uma doença dolorosa e
que gera sofrimento6.
Da mesma forma, o estigma
ligado à morte pode estar relacionado aos índices de óbito. O câncer é a
segunda principal causa de morte em todo o mundo, sendo responsável por cerca
de uma em cada seis mortes em 20187. Da mesma forma, é a segunda
causa nas Américas, com 3.792.000 novos casos - 21% do total mundial - além de
1.371.000 mortes, em 20188. No Brasil, a estimativa de 2020 foi de
309.230 casos novos em homens e 316.140 em mulheres, contabilizando 16.137
óbitos em homens por cânceres de traqueia, brônquios e pulmões, enquanto, nas
mulheres, a mortalidade maior foi por câncer de mama, chegando aos 16.724
óbitos9. Pela sua alta incidência e mortalidade, o câncer se mantém
ligado à ideia de morte, ainda um tabu na sociedade10.
Por conta disso, se afasta a
morte no cotidiano, pelo silêncio, pela ausência dela no discurso, uma vez que
culturalmente representa o desconhecido, o oculto e o fim11,12.
Entretanto, estudo de revisão aponta a necessidade e importância de prover
espaço de escuta de dúvidas, aflições e angústias de pacientes e familiares,
para melhor direcionar assuntos que envolvam a terminalidade
da vida13.
Na temática, há algumas
publicações que abordam o tema, como a atitude de profissionais da saúde frente
à morte e seus significados14,15, a atitude de pacientes em cuidados
paliativos frente à morte na atenção domiciliar16, as necessidades
dos pacientes em cuidados paliativos com câncer diante do processo de morte e
morrer3, a morte para cuidadores familiares17, e o que
uma morte boa seria para pacientes oncológicos18. Entretanto, este
estudo avança em apresentar o significado da morte para os pacientes
oncológicos hospitalizados, que, por vezes, testemunham a morte de outros
pacientes e que, possivelmente por isso, a sentem mais próxima de si mesmos19.
Desta forma, sendo o câncer
uma doença que ameaça a vida, desperta emoções, sentimentos e frequentemente é
responsável por sofrimento psicossocial significativo, que está presente no
cotidiano dos hospitais oncológicos, se acredita na necessidade da realização
deste estudo. Assim, este tem a seguinte questão norteadora: quais os
significados da morte para adultos com câncer hospitalizados? Para respondê-la,
delineou-se como objetivo conhecer os significados da morte para adultos com
câncer hospitalizados.
METODOLOGIA
Este estudo se trata de uma
pesquisa de natureza qualitativa, do tipo descritiva, realizada em duas
unidades de internamento adulto de um hospital oncológico do Paraná/Brasil, que
assiste pacientes clínicos, cirúrgicos e em cuidados paliativos. A pesquisa
qualitativa emprega diversas concepções filosóficas, estratégias de
investigação e métodos de coleta, análise e interpretação de dados. Por lentes
despidas de filtros, é possível conhecer o significado que as pessoas ou grupos
atribuem ao problema ou questão, pois parte de premissas individuais, modos
singulares de compreensão de mundo20.
Dos 30 pacientes elegíveis,
indicados pela equipe de enfermagem, médica e administrativa, 27 aceitaram
participar da pesquisa e três recusaram, por não manifestarem interesse, e
foram selecionadas para compor uma amostra intencional. Esta é aquela cujas
características são definidas para um propósito relevante para o estudo21.
Foram incluídos pacientes com idade acima de 18 anos com diagnóstico de câncer
em qualquer estágio e modalidade de tratamento, hospitalizados por tempo
indeterminado. Excluíram-se aqueles com rebaixamento de nível de consciência e
em desorganização emocional.
Os dados foram coletados no
período de dezembro de 2019 a março de 2020, por meio de dois instrumentos
construídos pelas pesquisadoras: o perfil sociodemográfico
e clínico do participante e o roteiro de entrevista semiestruturada, com a
questão disparadora: o que significa a morte para você? É importante ressaltar
que a pergunta foi validada por meio de um teste piloto com três participantes,
os quais foram incluídos no estudo, uma vez que a pergunta, bem como os
próprios instrumentos criados pelas autoras, corresponderam ao objetivo, e não
apresentou limitadores aos participantes.
A entrevista foi realizada em
data e horário previamente agendados, nas unidades de internação clínica e
cirúrgica; foi utilizado dispositivo gravador de voz, com média de duração de
dez minutos. Após isso, as entrevistas foram transcritas em documento Libre
Office e inseridas no Software Iramuteq para elencar
as classes.
Para a análise de dados,
utilizou-se método de análise de conteúdo de Creswell
em seis etapas20. A primeira correspondeu à organização e preparação
dos dados para a análise - as entrevistas foram transcritas na íntegra; na
segunda, fez-se a leitura das entrevistas transcritas em sua totalidade;
seguiu-se à terceira etapa de codificação dos dados, processados pelo software Iramuteq, que resultou em seis classes; a quarta etapa foi
da descrição dos dados, com base na codificação atribuída, em que emergiram
quatro categorias relacionadas aos significados; a quinta etapa envolveu a
representação da análise, pela fala dos participantes e pela análise de
similitude e nuvem de palavras, gerados pelo software Iramuteq;
a última etapa foi de interpretação da análise, com os significados extraídos
interpretados e correlacionados com os achados existentes da literatura,
relacionados à temática, e preferencialmente atualizados.
Este estudo respeitou os
preceitos éticos da Resolução CNS nº 466/201222, tendo sido aprovado
pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos, pelo Parecer nº 3711006, sob
o Certificado de Apreciação e Aprovação Ética nº 20721719500000098. Os
participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e
foram identificados pelo código: P (participante) + número em algarismos
arábicos em ordem crescente dos participantes entrevistados + F ou M (gênero
feminino ou masculino) + unidade de internação (A ou B – ambas
clínico-cirúrgicas).
Resultados
Dos 27 participantes, 59% (n=16)
eram do sexo feminino, 52% (n=14) moravam em Curitiba (Paraná), 18,5% (n=5) na
região metropolitana de Curitiba, e 29,5% (n=8) em demais cidades do estado do
Paraná, eram predominantemente brancos (77,5%; n=21), católicos (66,5%; n=18),
casados (55,5%; n=15), com baixa escolaridade (52%; n=14) e tinham em média 2,6
filhos. Quanto ao cuidador principal, se dividiam entre familiares não-cônjuges
(48%; n=11), cônjuges (33%; n=9), não possuíam cuidadores (18,5%; n=5) ou eram
informais (7,5%; n=2). Em relação às atividades ocupacionais e/ou
profissionais, 59% (n=16) estavam afastados para tratamento médico, 15% (n=4) eram
aposentados, 11% (n=3) trabalhadores domésticos, 11% (n=3) trabalhadores do
comércio, 11% (n=3) do lar e 7,5% (n=2) eram mestres de obra/pedreiro. No
tocante às características clínicas, 44,5% (n=12) dos participantes tinham
diagnóstico de câncer hematológico, e 55,5% (n=15) tumores sólidos; 26% (n=7)
estavam em estadiamento IV, com metástase óssea e
pulmonar. Em relação ao tratamento, 66,5% (n=18) participantes fizeram
quimioterapia, 18,5% (n=5), radioterapia e 55,5% (n=15) foram submetidos a
procedimentos cirúrgicos.
Após codificação dos dados
pelo software Iramuteq, emergiram 52 segmentos, 27
números de textos, correspondentes ao número de participantes entrevistados,
415 formas e 1.629 ocorrências, gerados em nove segundos, que compuseram seis
classes e quatro categorias: a morte como mudança de vida e passagem; quando a
morte é melhor que o sofrimento; a expectativa na intervenção divina; e a morte
negada e distanciada, apresentadas a seguir (Figura 1).
As falas dos
participantes foram ordenadas a partir dos vocábulos: passagem, viver, morrer,
medo e aceitar, que foram os mais frequentes, com valores de qui-quadrado mínimo de 3,4 e p<0,0001. É possível observar os vocábulos mais utilizados em
ordem decrescente de ocorrência no dendograma da
Figura 1, bem como as classes geradas pelo programa (Figura 2).
Por meio das Figuras 2 e 3, se visualizam a análise de
similitude e a nuvem de palavras, pelas quais é possível perceber a presença e
significância da palavra “morte”, indicando como os participantes reportaram
seus pensamentos e percepções em relação ao significado dela. A análise de
similitude se fundamenta na teoria dos grafos e é alcançada com base na
concorrência de palavras em segmentos de texto23, enquanto a nuvem
de palavras produz uma representação gráfica das ocorrências do corpus, tendo
cada palavra um tamanho proporcional à sua frequência24.
Observa-se,
na Figura 3, que ligadas ao vocábulo “morte” estão palavras como aceitar,
alívio, sentimento, medo e triste, indicando o significado dela como um momento
difícil, que atinge a todos em algum momento da vida. Isso também é acentuado
pelos “braços” da Figura 2, em que o vocábulo “morte” está correlacionado às
palavras “vida”, “Deus”, “ficar” e “melhor”, que direcionam à vida eterna ou à
vinculação a Deus.
As classes identificadas e as
categorias são apresentadas a seguir.
Classes 1 e 6 - Categoria: Quando a morte é melhor que
o sofrimento
Nesta categoria, a morte surge
como algo melhor que o sofrimento, por vezes, um alívio, tanto para o paciente
quanto para a família. Isto se deve pelas tantas limitações e imposições que
resultam do adoecimento e agravamento da doença.
Figura 1
Dendograma
Figura 2
Análise de similitude
Figura 3
Nuvem de palavras
Nas classes 1 e 6, os
vocábulos mais presentes foram: morrer, passar, difícil, ficar e medo.
(...) se eu estivesse sofrendo
muito, com dor, eu ia preferir morrer, se tivesse chance. Ficar sofrendo aqui,
para quê? Mesmo se eu tivesse alta e ficasse em casa numa cama sofrendo,
dizendo que não vai ter cura, eu preferiria morrer de uma vez. (P4mB)
A pessoa que fica em cima de
uma cama, dependendo da família para tudo, é melhor a morte do que o
sofrimento. Assim não sente dor, não sente nada. É um alívio para a pessoa,
alívio para a família, alívio para a pessoa que está sofrendo ali, sabe?
(P14fA)
A morte deve ser a melhor
coisa que existe na vida. Eu penso assim. A morte vai ser o livramento disso
aqui (...), que é o que dói, o que adoece. (...) Eu imagino que seja tirar esse
peso todo e finalmente ficar livre, ficar solto. (P15fB)
Mesmo percebendo o processo de
morte como algo ruim, ela pode indicar alívio, algo positivo que vem para
acabar com as dores e tudo que envolve o agravamento da doença. A dependência
oriunda do processo de adoecimento também foi fator que provocou sofrimento.
Pelos depoimentos, se pode entender que depender do outro leva a um aumento de
angústia; por isso, se percebe a morte como libertação, uma vez que ficar no
hospital e viver a progressão da doença e do sofrimento pode ser, por vezes,
pior. Dessa forma, os participantes a percebem como um alívio no final de vida,
por vezes a retratando como algo positivo.
Classe 2 – Categoria: A expectativa na intervenção
divina
Nesta categoria, os
participantes trouxeram relatos sobre a religiosidade e espiritualidade, bem
como sua importância ao longo do tratamento e conforto em relação ao
significado da morte. Por vezes, demonstraram certa expectativa divina pelo
melhor, depositando em Deus confiança e esperança nos dias que se sucederiam.
Os vocábulos mais presentes
nesta classe foram: melhor, viver, Deus, querer e medo.
Eu não tenho medo da morte. Eu
sou Testemunha de Jeová, eu acredito na bíblia, e na vida eterna. (...) Eu vou
lutar contra a minha doença até as últimas consequências, que é isso que Deus
quer que a gente faça; que acredite no profissional, que procure o médico, que
faça o que eles querem. Eu preciso fazer a minha parte para que Ele [Deus] faça
a minha. (P8mA)
Eu acho que um dia todo mundo
vai, porque isso já está escrito, sei que Deus que dita, então Ele é o dono da
morte, da vida e da morte; Ele determina a hora que você vai. (...) Então cada
um tem que compreender as coisas de Deus porque é tudo de Deus, nada é por
acaso. Não sou eu que comando, é Ele que comanda a nossa vida, Ele que coordena
tudo, que comanda tudo, e a morte também, então é só Ele que pode nos levar
daqui para lá. (P25fB)
A morte para mim é uma
passagem para algo melhor, eu espero em Deus, porque eu já fiz muita coisa
errada, não estou fazendo mais, e espero que seja uma passagem boa. (P21mA)
Alguns participantes, quando
perguntados sobre o que pensavam sobre a morte, trouxeram Deus em suas falas,
citando que Ele possui controle sobre suas vidas, que dita o que está por vir,
mesmo que seja a morte. Esta, sendo um desígnio divino, passa a ser boa. Também
demonstram fé e crença, na expectativa da intervenção divina. De certa forma, a
religião ou a crença em Deus despertam confiança no futuro.
Classes 3 e 4 – Categoria: A morte negada e
distanciada
Nesta categoria, os
participantes relataram temer a morte e evitar pensar nela, também sentindo
dificuldade de expressar seus sentimentos ou pensamentos em relação à finitude.
A reflexão a respeito da morte pode desencadear sentimentos e emoções difíceis
e penosas. Desta forma, se tende a distanciá-la e negá-la, evitando o
enfrentamento das emoções que manifestam-se em volta da própria mortalidade.
Os vocábulos presentes nesta
classe foram: nunca, nada, pensar, aceitar, hora e morte.
Eu não penso sobre a morte,
morrer. A gente luta para não morrer. É difícil, mas se tiver que acontecer,
temos que aceitar, vamos fazer o quê? Não quero e nem penso em morrer. (P7mA)
Não sei dizer. Nunca pensei.
Tenho medo. Eu tenho medo da morte, eu acho que eu estou muito jovem ainda. Não
sei falar. Não sei dizer direito. Sensação estranha. Acho que é o fim. (P9mA)
Sobre a morte é difícil falar.
A morte, eu não sei. Não vou saber te responder. Não penso, e não tenho medo
também. (P10mA)
O relato de não querer morrer,
querer viver mais, mesmo sabendo da facticidade, é compreensível, visto que 15
dos participantes eram casados e tinham de dois a três filhos, o que pode estar
conectado à ideia de vê-los crescer ou de aproveitar a vida ao lado das pessoas
queridas. Além disso, alguns pacientes criaram barreiras, os chamados
mecanismos de defesa, para os impedir de se conectar e sentir algo em relação
ao que estavam vendo e percebendo, uma forma de evitar sentir o inevitável, de
pensar e refletir sobre o que pode causar dor, de criar uma barreira na
tentativa de afastar a própria morte.
Classe 5 – Categoria: A morte como mudança de vida e
passagem
Nos depoimentos desta
categoria, se observa a morte como um sono profundo, mudança de uma vida para
outra, uma passagem e um recomeço. Por mais complexo que seja repensar a morte
a partir de uma visão natural, que faz parte do viver, há pacientes que
demonstraram aceitação frente à finitude da existência, uma crença em algo
melhor após a morte, que se mostrou como uma forma de adquirir certo conforto
diante do desconhecido. Assim, a morte surge como uma mudança de vida, para uma
vida boa, melhor, sem sofrimento e adoecimento, pensamento associado e
fomentado nas crenças religiosas e de pós-morte.
Na classe, os vocábulos mais
presentes foram: passagem, acreditar e vida.
A morte para mim é como um
sono profundo. (...) Quando você apaga, que você dorme, e você não sabe o que
está passando; a morte é a mesma coisa, que nem um sono. Só de uma passagem
para outra. Eu sou muito católico, eu acredito que existe o outro lado da vida.
(P13mA)
Eu acho que é só uma passagem,
porque na minha religião, na minha cabeça, a gente tem uma vida eterna e
aprende que é uma passagem. Você mede seus atos, você é julgado pelos seus
atos, pela sua vida, e vai passar a vida na eternidade, no bem ou no mal.
(P16fB)
A morte para mim é o mesmo que
uma mudança de vida. É uma coisa que não
se quer para ninguém e acontece dentro da família, e tem que se conformar, não
tem o que fazer. É difícil. (P20mA)
Os participantes relataram a
morte como “uma mudança de vida”, que geralmente não se deseja, mas que ocorre
sem ter o que fazer, o que retrata certa frustração diante de sua
inevitabilidade. É uma aceitação discreta, sincera, de alguém que já viveu a
morte de familiares e entende que não se pode evitá-la, como relatado pelo
participante P20mA. Além disso, ligada à religiosidade e a crenças em algo
maior, para outros participantes, ela surge como uma passagem, seja para outra
vida, seja uma vida eterna, e até mesmo um momento de penitência, de julgamento
de atos realizados enquanto na Terra. O fato de acreditar que há algo após a
morte parece reconfortar e trazer alento aos pacientes acometidos pelo câncer.
DISCUSSÃO
O significado da morte se
caracteriza, em alguns estudos, para o paciente com câncer, como um processo
que é bom, quando é o resultado de uma morte confortável, rápida, independente
e com sofrimento minimizado, bem como quando mantêm as relações sociais intactas18,25,
o que nem sempre ocorre. Consequentemente, ela ainda desperta os mais diversos
sentimentos, pensamentos e emoções10, principalmente em pessoas
jovens como as do estudo, que em sua maioria possuem filhos, são casadas e
sentem que têm muito a viver.
Os pacientes passaram por
diversos procedimentos cirúrgicos, modalidades e protocolos de tratamento,
tendo grande parte se afastado de suas atividades laborais, o que comprometeu a
renda familiar, afetando a qualidade de vida e suas percepções sobre o momento
que estavam vivendo26.
Estar consciente do processo
de adoecimento, bem como da dependência que surge com o agravamento da doença,
pode ser desolador, causar ansiedade e medo diante do que está por vir. Por
conta disso, alguns participantes relataram perceber a morte como algo positivo
quando vem para aliviar o sofrimento, sendo por vezes melhor do que depender de
entes queridos para realização do cuidado íntimo, por exemplo27.
Da mesma forma para cuidadores
familiares de um estudo brasileiro, esses acreditavam que a morte pode
proporcionar alívio diante de um sofrimento que se prolonga, tanto para o
paciente quanto para os demais envolvidos. Os dados deste estudo corroboram com
a literatura, mostrando uma representação diferente daquela usual na cultura do
ocidente, em que a morte é geralmente concebida como um momento de dor e
angústia17.
Neste cenário, o paciente pode
se sentir um fardo diante do nível de dependência de cuidados que cai sobre os
familiares, dando origem a sentimentos de culpa e angústia. É importante,
enquanto profissional da saúde, proporcionar espaço aos pacientes para falar de
seus sentimentos e emoções, identificar suas necessidades e, assim, estabelecer
um plano de cuidados mais holístico a partir da escuta ativa, tanto para o paciente
quanto seus familiares3.
Ademais, os pacientes
oncológicos podem apresentar algumas atitudes frente à morte, muito similares
aos participantes deste estudo, como arrependimento ou culpa por ações do
passado que os levaram ao estado de saúde e enfermidade atual; a reflexões
sobre a morte e o pós-morte; a ressignificar as
experiências de vida; a manifestar e fortificar a fé, a religião e a
expectativa em uma intervenção divina, bem como a fazerem planos para o futuro
e mencionarem desejos16. Neste ínterim, se acredita que as atitudes
frente à inevitabilidade da morte são influenciadas pelas representações e
significados daquela para os pacientes com câncer.
Além disso, diante do medo do
desconhecido que a morte pode desencadear, grande parte dos pacientes trouxe
Deus em suas falas, como o Ser/algo que possui controle sobre suas vidas, que
dita o que está por vir e que oferece segurança. Junto a isso, em alguns
momentos, foi possível notar a barganha, em que os pacientes expressaram ter de
realizar a sua parte para que Deus fizesse a dele, como uma negociação. No
estágio da barganha, existem uma finalidade e uma recompensa futura no
sofrimento28.
Nesses casos, muitas vezes, os
pacientes não sabem lidar com a morte e aceitá-la, sentem dificuldade em descrever
o que significa, recorrendo à religião em busca de conforto espiritual29,
principalmente porque a espiritualidade se correlaciona positivamente com a
qualidade de vida e pode levar a uma melhor aceitação da doença, trazendo
benefícios30. Quando trabalhada, a dimensão espiritual pode conferir
consolo, apoio e força psicológica aos pacientes que se encontram com doenças
que ameaçam a vida31,32.
Neste ínterim, Deus aparece
como principal fonte das expectativas de cura. No entanto, o apego a Ele aponta
certa contradição. Ao mesmo tempo que se esforçam, segundo seus depoimentos,
para deixar claro que a fé traz tranquilidade diante da doença, apegam-se a uma
cura que só pode vir de algo mágico e não mais dos meios técnico-científicos.
Assim, por um lado, a fé é capaz de oferecer suporte e trazer certo sentido a
essa vivência33, mas, por outro, a associação entre doença e castigo
divino pode acarretar efeitos que oferecem riscos ao equilíbrio do paciente e
da família, ocasionando um impacto negativo no bem-estar, na qualidade de vida
e na adesão ao tratamento34.
Além disso, pacientes com
câncer podem apresentar uma postura negacionista
diante do adoecimento e da própria mortalidade. A negação é um dos estágios da
morte elencados por Elisabeth Kubler-Ross, que a define
como uma defesa temporária depois de notícias inesperadas, que funciona como um
mecanismo de defesa com o intuito de recuperação após choque. Mesmo
considerando a morte como possibilidade e fato, eles podem deixar esse
pensamento de lado para lutar pela vida28.
Isto se deve porque as emoções
e os sentimentos em relação à morte podem ser tão fortes que alguns
participantes decidem não conversar sobre ela ou não sabem se expressar em
relação à mortalidade. O adoecimento os confronta com a própria finitude,
principalmente quando do diagnóstico de câncer, que carrega um estigma social
que o associa à morte e ao sofrimento. Esses fatores colocam o indivíduo diante
da sua fragilidade, de um vazio de sentidos33.
Entretanto, foi possível
perceber que os pacientes que possuíam crenças na vida após a morte, ou de que
a morte do corpo não representava o fim, de certa forma, melhor definiam o
significado, reagiam ou melhor aceitavam a morte e o adoecimento. Com isso, se
pode pensar que a espiritualidade/religiosidade levam à aceitação da doença e
aumentam a esperança no futuro35. Da mesma forma, o bem-estar
religioso e espiritual proporcionam estilo de enfrentamento positivo,
influenciando a maneira de lidar com o diagnóstico e a adesão ao tratamento
oncológico, promovendo conforto e resiliência36,37, bem como levam a
uma busca de sentidos para a vida e para a morte31. Além disso, a
religiosidade e a espiritualidade estão associadas à qualidade de vida dos
pacientes38, demonstrando que as crenças religiosas e as práticas de
espiritualidade podem influenciar e ser benéficas na percepção da doença, da
vida e de sua finitude.
É importante ressaltar a
relevância de levar em conta no planejamento de cuidados os aspectos religiosos
e espirituais de cada paciente, a fim de proporcionar um cuidado holístico e
humanizado, abrangendo não somente as demandas físicas, mas emocionais, sociais
e espirituais.
Não obstante, nesta
conjuntura, há algumas barreiras mencionadas pelos profissionais da saúde como
falta de tempo, de conhecimento e medo de impor suas próprias crenças, o que
aponta uma insegurança e a necessidade de treinamento com relação à temática39.
A reflexão sobre o processo de morte e morrer permite os estudantes e
profissionais da saúde a dar sentido a esta experiência em diferentes esferas,
ainda mais por verem o processo como parte integrante do ciclo vital humano,
como evento inerente, percepção que se reflete nos aspectos social, espiritual
e ético, enriquecendo o cenário no cuidado profissional de enfermagem14,15.
Por fim, a limitação do estudo
está relacionada à amostra, por ser de participantes assistidos em um único
hospital oncológico, limitando-se ao significado da morte para esse grupo
específico. Além disso, não correlacionamos as características: idade, estadiamento e tratamento, que podem influenciar nos
significados da morte para a população do estudo. Seria interessante o
desenvolvimento de pesquisas em demais centros oncológicos ou com a população
do estudo para nível de comparação e conhecimento, bem como a avaliação das
demais variáveis e características não abordadas neste trabalho.
CONCLUSÕES
Este estudo avança e atinge o
objetivo de conhecer os significados da morte para pacientes oncológicos
hospitalizados, que no cotidiano hospitalar, se aproxima de sua experiência
existencial. Para os pacientes adultos com câncer neste estudo, os significados
da morte transitam entre ser um processo de passagem, de mudança de vida, que
pode causar medo, insegurança, e que em Deus é possível encontrar o suporte
para o enfrentamento do adoecimento e do agravamento da doença. Além disso, a
morte, por vezes, surge como algo positivo, um alívio e um descanso.
Entretanto, alguns pacientes, quando indagados sobre o significado da morte,
relataram não pensar e evitar falar sobre, na tentativa de mantê-la longe,
distante, o que foi nutrido pelo desejo de uma vida mais longa e próspera.
Desta forma, um aspecto
importante deste estudo é a possibilidade de discussão a respeito da influência
desses resultados no cuidado de enfermagem, que busca distanciar a morte de sua
prática, mas que precisa ser estudada e compreendida para benefício dos
pacientes e família.
DECLARAÇÃO DE CONFLITO DE INTERESSES
As autoras declaram não haver
conflito de interesses.
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