Danilla Aguiar y Leandro Galastri

A Revolução Russa como escola política na teoria socialista e prática revolucionária de J. C. Mariátegui

Resumo: O texto apresenta a interlocução do marxismo de Mariátegui com as transformações revolucionárias desenvolvidas na Rússia bolchevique, a influência da experiência intelectual em sua estadia europeia e as formas em que propõe a organização dos trabalhadores peruanos com vistas à resolução da questão agrária e camponesa em seu país. Em nossa hipótese, a análise dialética do nacional com o plano internacional e o destaque conferido às experiências de auto-organização locais foram fundamentais para o desenvolvimento de sua prática leninista e revolucionária.

Palavras-chave: Mariátegui. Revolução Russa. Lênin. Marxismo. Questão agrária.

Abstract: The text presents the interlocution of Mariátegui’s Marxism with the revolutionary transformations developed in Bolshevik Russia, the influence of intellectual experience in his European stay and the ways in which he proposes the organization of Peruvian workers with a view to resolving the agrarian and peasant issue in his country. In our hypothesis, the dialectical analysis of the national with the international plan and the highlight given to local self-organization experiences were fundamental to the development of their practice Leninist and revolutionary.

Keywords: Mariátegui. Russian Revolution. Lenin. Marxism. Agrarian question.

O centenário da Revolução Russa, em 2017, reavivou a necessidade de debater a atualidade da estratégia revolucionária bolchevique –uma estratégia da tomada do poder pela classe operária a partir de possibilidades abertas pela crise política e econômica vivida após o início da primeira guerra mundial– assim como a forma que os marxistas revolucionários se utilizaram à época dessa experiência de auto-organização como grande escola política. Mais ainda, a Revolução Bolchevique, como acertadamente indicou o italiano Antonio Gramsci, representou uma “nova atmosfera moral” de liberdade, um fato político fruto da vontade coletiva que o gestou (Gramsci, 2004, 102). Seus aspectos centrais de caráter universal abriram espaço para promover internacionalmente alicerces para pensar uma nova cultura e experiência revolucionária proletária a partir do que aconteceu na Rússia fundamentalmente entre 1917 e 1920, inspirando outros revolucionários em todo mundo, inclusive na América Latina. Nesta, destacam-se os escritos do peruano José Carlos Mariátegui, autor que sempre manifestou posições favoráveis ao processo histórico e político desencadeado pelos bolcheviques em outubro de 1917.

Em 2020 completam-se noventa anos da morte de Mariátegui e 150 anos do nascimento de Lênin, ocasião que julgamos oportuna para lembrar que, também pela leitura do líder russo, pode Mariátegui desenvolver, por aproximações e contrapontos, a “heterodoxia” e a originalidade de seu pensamento e a tradução do marxismo para as condições concretas da Indoamérica. Influenciado também pelo bolchevismo, Mariátegui vislumbrava na organização das massas –com base numa concepção ampla da educação e formação cultural dos grupos subalternos– a ferramenta de um projeto político que culminaria na construção do partido socialista sem “hierarquia de vanguardas”, em que camponeses e proletariado eram, em grande parte, as mesmas pessoas.

As principais ideias do pensador marxista peruano continuam atuais para a análise concreta da luta de classes latino-americana, principalmente em torno dos temas da raça e da concentração fundiária, podendo-se traçar um paralelo desta última questão com o que Lênin realizava no contexto russo.

Necessário é lembrar também da influência do contato vivente de Mariátegui com o pensamento marxista e leninista na Europa, sendo marcante a experiência ordinovista1 nesse momento, bem como o significado da Revolução Russa na interpretação do marxismo de Mariátegui, que se reflete no debate marxista latino-americano e mundial em meados da década de 1920 e 1930, partindo do pressuposto que o autor representa, entre seus interlocutores à época, a ala revolucionária do marxismo frente às variantes reformistas.

Indica-se, nos apontamentos conclusivos, como a análise dialética da dimensão nacional com o plano internacional e o destaque conferido às experiências de auto-organização locais lhes pareciam fundamentais para tecer uma práxis revolucionária. É um debate que tem estreita relação com as etapas de expansão do marxismo na América Latina, com o surgimento e expansão da corrente comunista no subcontinente. Relaciona-se também com o tempo presente de avanços de crises políticas, econômicas e de hegemonia, de caráter orgânico, que se expressam em crescentes ataques à classe trabalhadora ao passo que se perde a centralidade da estratégia revolucionária em nome da tática democrática. São discussões que estiveram postas pela esquerda marxista desde 1899, com a publicação do livro de Rosa Luxemburgo “Reforma ou Revolução”, que realizou uma crítica precisa das bases teóricas e práticas do reformismo, passando pelos debates no seio revolucionário que proporcionou a emergência da revolução russa, entre bolcheviques e mencheviques, e que também se faz presente nos debates latino-americanos a partir do começo da vida republicana até os dias de hoje.

Procurando compatibilizar uma atitude nacionalista progressista e o internacionalismo, mesmo fazendo uso da análise da situação concreta do Peru, Mariátegui via na Revolução Russa a mais alta experiência de avanço revolucionário conquistado pelo proletariado mundial, “um tema de estudo geral para todos com alguma curiosidade intelectual”, para “além dos partidários e propagandistas” (Mariátegui, 2012, 56).

Periodismo, educação e experiências de auto-organização

A ideia de fomentar o terreno cultural proletário –que numa concepção leninista e gramsciana referenciaria à organização e disciplina– assim como conquista de consciência do próprio papel histórico, a função da educação e a definição de um programa político são preocupações que se encontram presentes no programa de L’Ordine Nouvo, periódico semanal dirigido por Antonio Gramsci e que passa a ser um programa de partido que muito influenciou as ideias do revolucionário peruano enquanto vivia na Itália. A partir das iniciativas educativas e culturais do jovem Gramsci, com a crítica à cultura liberal italiana, à educação enciclopedista como resposta à crise do racionalismo exposta no pós-guerra, fomenta-se a proposta de atuação de L’Ordine Nouvo junto aos conselhos de fábrica como espaços de educação autogestionária. Como destacado por Fernanda Beigel (2005, 39), essas marcas do periodismo desenvolvido em Turim sob a direção de Gramsci como uma “concepção política e uma forma de práxis” também se fizeram presentes na formação mariateguista, tanto que o marxista peruano funda, ao voltar ao país, uma revista, a Amauta2, com finalidade semelhante ao primeiro período ordinovista. A revista Amauta durou de setembro de 1926 a setembro de 1932, continuando a circular no Peru mesmo após a morte de Mariátegui, seu idealizador, e tem seu papel destacado por Alberto Flores Galindo na emblemática afirmação de que a “Amauta acabou sendo mais que uma revista: foi a antessala do partido” (Flores Galindo, 1991, 69). Passaram pelas páginas dessa revista escritos de autores peruanos, latino-americanos e também textos de Rosa Luxemburgo, Lênin, Trotsky, André Breton, Máximo Gorki, Marinetti, Georges Sorel, dentre outros, publicando os mais diversos temas como poesia, teatro, crítica literária, linguística, arte, antropologia, relações internacionais, imperialismo, e, claro, problemas mundiais, política, história, economia, movimento operário e questão indígena, postulando a necessidade objetiva e subjetiva dos grupos subalternos peruanos de conhecer o que ocorre no mundo em termos de política, economia e sociedade. Foi também na Amauta, junto a temas de relevância local, que o marxista peruano apresentou a revolução de outubro com destacada reflexão, demonstrando como esse fato histórico modificou diferentes esferas da vida, desde a política até a cultura.

A situação local/nacional não poderia ser compreendida sem uma análise do desenvolvimento capitalista internacional. O processo educativo das massas, numa concepção bem abrangente, assim como foi preocupação de Gramsci, permeou boa parte das obras de Mariátegui, que chegou a desenvolver teoricamente a questão da educação das massas indígenas no Peru (Mariátegui, 1970, 1979; Pericás, 2006).

É relevante destacar que, muito embora a principal obra de Mariátegui, Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, tenha sido escrita cerca de uma década após a Revolução Russa, em 1928, as inquietações encontradas em seus escritos e militância mantêm uma linearidade e consequente maturação, sendo possível verificar que o autor, ao passo que discutia fundamentalmente temas nacionais, não perdia seu grande norte, que era a construção de uma nova sociedade, articulando teoria e prática revolucionária. Assim, o vivo testemunho histórico foi o terreno onde se desenvolveu a sua convicção no marxismo.

Mariátegui, ainda em sua juventude, se envolve com o movimento estudantil peruano, inspirado em grande medida pela Reforma Universitária de Córdoba, na Argentina3. Sua militância –mesmo que ainda incipiente– e a consequente oposição ao então presidente peruano, o general Augusto Leguía, ocasionam o fechamento do jornal onde trabalhava à época, o La Razón, e um “exílio” forçado na Europa, onde viveu durante os anos de 1919 a 1923, tendo passado maior parte do tempo na Itália. Vivia como uma espécie de “agente de propaganda do governo no exterior”, alternativa que lhe foi dada para não ser preso em solo peruano. Posteriormente afirmava que somente durante sua estadia na Europa, mais precisamente através da sua experiência de viver por vários anos na Itália e através da passagem por outros países onde vivenciou as experiências do movimento operário nas organizações sindicais e partidárias e os impactos da Revolução Russa, foi capaz de compreender as relações capitalistas em países semicoloniais como no Peru. Na Europa, Mariátegui é leitor do jovem Gramsci, que estava organizando a imprensa do partido comunista da Itália. As semelhanças entre os dois autores, mesmo não havendo registros de que tenham se conhecido, são inegáveis. Muito provavelmente, tal semelhança é proveniente do espírito revolucionário de ambos, e também por terem experimentado o contexto da história italiana e das lutas de classe mundial ainda sobre o impacto da revolução de outubro, do legado dos conselhos e ocupações de fábrica em Turim, o Biennio Rosso, entre os anos 1919 e 1920, a fundação do Partido Comunista da Itália, em 1921, a ascensão do fascismo, assim como os debates no interior da III Internacional.

Perante a nova configuração mundial de forças e os conflitos no interior do movimento comunista internacional, o marxista peruano participa do Congresso de Livorno e fundação do Partido Comunista da Itália –PCI (1921) e da Conferência Econômica Internacional (1922) aprofundando se no debate sobre os sindicatos, a constituição do partido e dos Conselhos de Fábrica como instrumentos necessários para um processo revolucionário, para construção de uma nova hegemonia (Dias, 2000).

Pensa a questão da hegemonia desde uma perspectiva leninista e gramsciana, incluindo no seu programa político reivindicações que contemplem outras categorias de trabalhadores, conquistando, desta forma, o apoio das classes aliadas. Postulava as necessidades materiais e simbólicas de uma revolução índia a partir do estudo da questão indígena desde a própria perspectiva indígena também, uma atividade que empreende no seu livro mais difundido, os “Sete Ensaios”. Os povos autóctones são frações de trabalhadores que devem escrever sua própria história e para isso devem se preparar intelectualmente. Essa história integral –utilizando-nos aqui de uma categoria que seria ainda apresentada por Gramsci nos Quaderni– deve ser escrita pelos seus próprios intelectuais, de maneira independente das interpretações da historiografia oficial, dominante (Gramsci, 2002). A reconstrução da história sob a base do índio seria um forte elemento de emancipação, que, junto com o internacionalismo proletário latino-americano aproxima esses povos que sentem a subalternidade em uma dupla perspectiva, através da exploração econômica pelo trabalho e pela opressão social intensificada a partir do racismo.

Enxergava como necessário despertar na classe trabalhadora e fundamentalmente nos grupos historicamente subalternizados no Peru e em grande parte da América Latina –os indígenas– uma vontade popular em avançar numa revolução socialista internacional, partindo das realidades locais.

Assimilar as lições dos soviets na Rússia, a fecundidade das experiências nacionais do bolchevismo com as greves de massas que surgiram no contexto pós 1905, como os verdadeiros líderes do movimento revolucionário, a importância dos jornais entre as três tendências comunistas, significava, para Mariátegui, analisar as experiências concretas de auto-organização e investir na formação política do partido via educação dos trabalhadores. Os soviets russos seriam esse instrumento da educação e sua direção, portanto, deveriam estar nas mãos operárias revolucionárias. Os próprios organismos soviéticos, dependendo de quem os dirigia, poderiam levar ao triunfo da revolução ou ao seu fracasso. O processo revolucionário havia demonstrado que o conselho era o principal organismo da democracia operária, “seriam não apenas a escola de direção e administração do processo fabril, mas também de educação político-cultural da classe operária, dotada de um ‘espírito de cisão’” (Del Roio, 2006, 314). Cabe destacar ainda a influência do sindicalista francês Georges Sorel na trajetória de Mariátegui. Algumas das incorporações se dão através dos conceitos “espírito de cisão” e, principalmente do “mito revolucionário”. Mariátegui visualizou na imaginação libertadora do mito soreliano o que para ele seria a fé revolucionária, para além de um conceito, uma paixão, uma ideia, um sentimento, que não significava, contudo, ingenuidade ou voluntarismo romântico. Segundo Robert Paris, o rompimento com o cientificismo positivista, bem como a recusa da ideia de progresso eurocêntrico que o revolucionário peruano encontrou nas ideias de Sorel, foram fundamentais para formar o seu marxismo criativo e heterogêneo (Paris, 1978). Paris destaca ainda que, como forma de aderir ao movimento real, Mariátegui se incumbiu da tentativa de unir Lênin e Georges Sorel, fundindo o socialismo científico com a ideia soreliana de mito.

Os exemplos de auto-organização nas conjunturas nacionais podiam ser vistos, na Itália, nos conselhos operários de fábrica, enquanto no Peru tinham-se os ayllus como experiência auto-organizativa característica da democracia andina4.

No horizonte de luta mariateguista, havia a reivindicação pela terra, diferentemente da pequena propriedade privada, mas alavancada pela organização coletiva, uma organização que poderia ressurgir do exemplo do coletivismo incaico, nessa forma organizativa concreta destacada nos estudos de Mariátegui sobre a formação social e econômica peruana, os ayllus, uma tradição do Peru profundo e das civilizações indígenas pré-colombianas. Na sua obra mais conhecida, os Sete Ensaios de Interpretação da realidade peruana, o autor indica que esse comunitarismo indígena possuía características agrárias, em grande medida, como um antecedente de auto-organização. Esse fator natural de socialização da terra presente nos antepassados indígenas atuaria junto ao enfrentamento do atraso no campo, explicitado na persistência do gamonalismo –prática de latifundiários peruanos que exploravam a força de trabalho do camponês local num regime de servidão– e da oligarquia latifundiária, assim como na nascente associação de uma precária burguesia com o imperialismo.

Destacava ainda a necessidade de que essa tradição ayllu mantivesse contato também com o movimento sindical político organizado já existente na capital, Lima, como forma de trazer unidade à classe subalterna. Havia ainda que determinar a direção dessa classe ao proletariado que, para o revolucionário peruano, seria o sujeito político capaz de cumprir essa missão, e que durante parte do tempo, principalmente em países de desenvolvimento tardio, exerceria uma combinação de trabalho proletário e também agrícola. Ao propor soluções concretas para tais entraves, determinava que algumas tarefas deveriam ser cumpridas para que se pudesse iniciar uma organização dos grupos da classe trabalhadora peruana, em sua maioria indígenas e camponeses. É importante ressaltar que Mariátegui não acreditava em uma “etapa democrático-burguesa nacional e antifeudal”, seu horizonte era o socialismo, que tinha como ponto de partida o Peru incaico e suas formas antecedentes de auto-organização. Essa organização partiria e seria dirigida pelas frações dos próprios grupos subalternos, e assim defendia, por essa via, uma nova organização ayllu que havia sido impedida pelo gamonalismo alinhado com a dominação imperialista no subcontinente (Mariátegui, 1979).

A união da consciência étnica com a consciência classista se faz fundamental para trazer o índio à luta revolucionária, junto com a classe trabalhadora em um sentido mais geral, para que se torne possível a libertação do capitalismo e se reconheça sua capacidade de autogestão econômica, política e cultural. O seu problema não está restringido ao aspecto cultural ou ao aspecto racial como costumeiramente se aponta, encontra-se muito mais relacionado ao problema da terra, da sua deposição e ausência de uma forma de sustento, no marco do desenvolvimento do sistema capitalista.

Essas propostas concretas para essa superação da condição subalterna estariam diretamente atadas à formação de uma vanguarda operária e à preocupação permanente com a prática política e intelectual das massas indígenas, camponesas, de trabalhadores e de estudantes.

Cabe destaque ainda para outro tema relacionado à educação e que faz parte da trajetória do pensador peruano, a participação no projeto das Universidades Populares González Prada5 (doravante UPGP), criado em janeiro de 1921 pelo seu principal interlocutor à época, o também peruano e líder Haya de la Torre, sob o qual discorreremos no tópico seguinte. Ao voltar da Europa, Mariátegui prontamente aceita o convite para lecionar no UPGP em Lima. Consistia em uma espécie de estudos nas comunidades, organizados coletivamente para realizar cursos de formação política, de análise de conjuntura, tratando-se de uma prática bastante utilizada no subcontinente –principalmente na Argentina e no Chile– assim como na Europa, visto que os espaços críticos eram tolhidos nos espaços de acesso à instrução formal. Enfrentou, como já se podia prever, vários embargos e perseguições do presidente Augusto Leguía, mesmo após sua estadia exilada na Europa, onde tornou-se, como gostava de se apresentar, “un marxista convicto y confeso” (Flores Galindo, 2006).

Mariátegui e a tradução latino-americana do leninismo: o problema da propriedade da terra

É adaptando a teoria marxiana para sua realidade concreta que Mariátegui chamará atenção para o problema específico da exploração da população indígena, acrescentando à problemática da luta de classes essa variável tão latino-americana que é a questão racial. Em sua opinião, o marxismo é a única concepção teórica que pode conferir um sentido moderno e construtivo para a causa indígena, elevando-a a um plano de política criadora e realista com base em sua própria condição social e econômica (Mariátegui, 1974, 188). Aqui, por exemplo, Mariátegui demonstra uma interessante afinidade com as reflexões de Lênin a respeito da união operário-camponesa sob a hegemonia dos primeiros. Observa que a causa indígena “conta com a vontade e a disciplina de uma classe que faz hoje sua aparição em nosso processo histórico: o proletariado” (Mariátegui, 1974, 188). Para Del Prado (Choy et al., 1970, 25), um dos traços característicos do trabalho de massas de Mariátegui ao organizar o Partido Socialista no Peru teria sido a importância decisiva que ele dera à conquista das massas camponesas e indígenas como aliados fundamentais do proletariado peruano, já que era sobre a grande massa formada pelas etnias quéchua e aymara que pesava a exploração semifeudal por parte das grandes fazendas açucareiras e algodoeiras do litoral.

Acompanha com vivo interesse os desdobramentos da revolução bolchevique na Rússia e as vicissitudes da construção do Estado socialista. Identifica nessa construção a obra de “homens heroicos e excepcionais”, no âmbito de uma “tremenda tensão criadora”. Considera o Partido Bolchevique como a expressão mais evidente da união entre teoria socialista e prática revolucionária, concedendo a Lênin o mérito principal de sua condução (Mariátegui, 1974, 213).

Nesse momento pode ser interessante um exercício teórico, ainda que breve, sobre o modo de proceder à análise de suas respectivas realidades concretas, por Lênin e Mariátegui. A forma de tratamento que cada um dá à questão agrária em seu país pode ser uma ilustração sistemática da afinidade político-teórica entre os dois revolucionários ou, mais especificamente, da perspectiva leninista de Mariátegui a respeito da tradução dos métodos do materialismo histórico para as condições concretas de seu país.

Há muito em comum entre a Rússia e o Peru agrários da virada do século XX: uma população camponesa enormemente majoritária, submetida a relações ainda semifeudais de trabalho, e um proletariado urbano de formação recente e pouco numeroso, concentrado em determinados centros. Some-se, porém, no caso do Peru, a voracidade dos capitais financeiros imperialistas inglês e americano sobre todos os ramos da produção econômica6 e o proeminente elemento étnico-racial, sendo indígena a imensa maioria componente daquele campesinato e proletariado, fato que agregava a questão racial como um elemento novo da luta classista. Vejamos como cada autor analisa sua própria conjuntura.

No texto “O Partido Operário e o campesinato”, publicado no terceiro número do Iskra em 1901 (Lênin, 1975, 464-473), Lênin explica a abolição da servidão ocorrida na Rússia na década de 1860. Os camponeses tinham de pagar, por meio de empréstimos junto ao governo, por pequenas porções da terra onde haviam vivido e trabalhado pela vida toda. Usou-se de força repressiva para reprimir os recalcitrantes. Os camponeses permaneciam com dívidas e obrigações pendentes junto a seus “antigos” senhores. O resultado fora o retorno à semi-servidão, proletarização da maioria e formação, a partir de uma minoria de kulaks, de uma nascente burguesia rural, ajuntando-se aí dezenas de milhares de mortes por fome e epidemias.

Lênin exorta a que se leve a luta de classes ao campo, unindo-se as lutas contra o capital e contra o jugo dos latifundiários. Segundo ele, haveria, no campo russo, contradições de classe dos dois tipos seguintes: entre o proletariado agrícola e os patrões rurais; entre todo o campesinato e toda a classe dos proprietários rurais. Ele observa que, apesar da primeira condição pertencer já às lutas do futuro, é a segunda que adquire caráter nacional de maior urgência na Rússia, pois sobre o proletariado agrícola se abatem ainda todas as opressões que caem sobre os camponeses. Já numa das primeiras elaborações da própria noção de hegemonia em Lênin, ele assevera que o partido operário socialdemocrata russo deve incluir em seu programa todas as reivindicações dos camponeses, se “pretende marchar à frente de todo o povo na luta contra a autocracia” (Lênin, 1975, 464-473).

Em “O proletariado e o campesinato”, publicado no número 11 de Novaya Zhizn, 12 de novembro de 1905 (Lênin, 1976, 164-165), Lênin permanece enfatizando a necessidade de se conquistar o essencial apoio do campesinato russo à revolução proletária. As perguntas cujas respostas considera urgentes são: “O que o campesinato espera da revolução? O que a revolução pode dar ao campesinato?”. E responde: “O campesinato quer terra e liberdade. Sobre isso não pode haver dúvidas. Todos os operários conscientes apoiam com todas suas forças o campesinato revolucionário” (Lênin, 1976, 165).

Trata-se, segundo Lênin, de uma luta não apenas pela socialização da terra, mas pela abolição do capital em todas as dimensões da força de trabalho. A luta por terra e liberdade é uma luta democrática. A luta para destruir a dominação do capital é uma luta socialista (Lênin, 1976, 167).

Em “Revisão do programa agrário do partido operário”, publicado em 1906 no periódico Nasha Myst como proposta do programa bolchevique para a solução do problema agrário apresentada no IV Congresso do POSDR (Lênin, 1976, 198-225), Lênin apresenta, na primeira parte do texto, o histórico do debate da questão agrária no seio da socialdemocracia russo daqueles últimos anos. Defronta-se com diferentes tendências e vertentes de interpretação e propostas políticas de grupos liderados, por exemplo, por Plekhanov (Grupo “Emancipação do trabalho”) e Riazanov (Grupo “Borbá”).

Nesse texto, comentando as propostas de outros setores do partido, Lênin entende como pertinentes e afinadas com os objetivos democráticos da revolução camponesa a expropriação de todas as propriedades territoriais (expropriação completa dos “terratenientes”), além também de sua completa nacionalização: “não cabe a menor dúvida de que a ideia de propriedade de todo o povo sobre a terra circula agora com extraordinária amplitude entre o campesinato” (Lênin, 1976, 209). Lênin é enfático com relação à proposta de que, diante do campesinato, deve-se defender o máximo de transformações democrático-burguesas. O papel do Estado, a alteração das formas de exercício de seu poder, não podem, em todo caso, ser subestimadas: “A medida radical de abolir a propriedade agrária fundiária é inconcebível sem a modificação radical das formas estatais” (Lênin, 1976, 216).

Ao criticar as propostas de reforma da propriedade agrária feitas por Maslov7, Lênin observa que não se pode elaborar um programa socialista de maneira retraída e acuada pela pressuposição de que a revolução não chegará até seu final. O projeto máximo deve orientar a estratégia programática. E é esse projeto máximo que desaparece da estratégia programática ao se fazer concessões definitivas a setores conservadores no âmbito de uma aliança de classes permanentemente defensiva por parte do proletariado (no caso em questão, o campesinato).

Observa Lênin que um Estado sustentado por tal aliança, pela própria lógica da luta de classes, tenderá a tomar iniciativas constantes para a proteção da propriedade privada da terra, restabelecê-la onde quer que tenha sido parcialmente abolida (Lênin, 1976, 216). Embora esteja pensando especificamente na propriedade operária, as preocupações estratégicas de Lênin alcançam maiores profundidades aqui. E as conclusões se impõem: o partido revolucionário não pode possuir um programa para uma nacionalização parcial da propriedade fundiária, bem como não pode possuir um programa de luta parcial contra o capital em geral e, por extensão, não pode projetar uma luta parcial contra o imperialismo. Nesse raciocínio, “parcial” significa precisamente agir de forma conciliatória com os inimigos de classe e seus representantes políticos: os rentistas fundiários, os capitais nacionais das diferentes frações da burguesia interna, o capital financeiro imperialista e seus respectivos partidos e representantes na cena política nacional.

Mariátegui e a questão agrária
no Peru

Para Mariátegui, a questão agrária em si e a mesma problemática da propriedade fundiária forneciam a estrutura da luta de classes no Peru. O marxista peruano estava preocupado com as mesmas implicações estratégicas da luta dos camponeses e do proletariado agrário para elaborar um programa de ação revolucionária que os unisse estrategicamente, junto com o nascente proletariado urbano, contra a espoliação promovida pelo capital financeiro internacional e seus aliados locais no Peru. A questão estratégica mais ampla, para Lênin tanto quanto para Mariátegui, era estabelecer as bases da ação política que tornasse o campesinato um aliado massivo para a luta classista.8

O autor apresenta uma composição de classes que descrevia em geral as populações americanas pré-independência e constituía um quadro de classes “opostas em interesses, sem nenhum vínculo de sociabilidade moral ou política” (Mariátegui, 1979, 43): uma aristocracia parasitária detentora de terras e do poder político de fidalgos, composta em sua maior parte de espanhóis; uma camada média de industriais e comerciantes que dispunha de condição econômica confortável e se organizava corporativamente; em terceiro lugar, os “villanos”, que empregavam efetivamente sua força de trabalho na produção, ou seja, era a camada do trabalho manual assalariado, compondo-se de artesão e proletários de todo tipo. Havia ainda, obviamente, uma massa de indígenas e africanos, que eram escravos e possuíam uma existência extremamente marginalizada e forçada à vida extra social (Mariátegui, 1979, 43). A bandeira revolucionária da independência seria, como se sabe, levantada pelos descendentes americanos das duas primeiras classes, educados nas metrópoles.

Os programas revolucionários de independência não promoveram o choque entre a nobreza rural e a burguesia comerciante. Antes, os uniram no interesse comum de se livrar do jugo da coroa espanhola. Assim, os processos de independência possuíram um caráter passivizante, marcado pela colaboração entre as classes dominantes aristocrática e burguesa e alijando completamente as massas camponesas, marcadamente indígenas no Peru, que não tiveram suas reivindicações ou interesses contemplados pelos movimentos nacionais de independência. As novas políticas agrárias aboliram formalmente as formas de servidão do indígena camponês. Porém, como deixavam intactos a concentração, o poder e a força da propriedade feudal, anulavam suas próprias medidas de proteção da pequena propriedade e do trabalhador da terra (Mariátegui, 1979). Assim, a aristocracia fundiária seguiu sendo a classe dominante no Peru.

Ao mesmo tempo em que não fora possível no Peru o estabelecimento de uma política predominantemente burguesa que se voltasse para uma distribuição menos injusta da propriedade da terra, o capital financeiro, majoritariamente estrangeiro, expandia-se e se associava com a aristocracia nacional, que mantinha intacto seu poder político. Finalmente, o desenvolvimento de grandes cultivos industriais de uma agricultura de exportação nas fazendas costeiras ocorria integralmente subordinado à colonização econômica dos países da América Latina pelo capitalismo ocidental. O capital financeiro britânico se interessara em explorar essas terras para produção de cana-de-açúcar e algodão. As hipotecas das propriedades agrárias colocavam grande parte dessas terras sob o controle de empresas estrangeiras. Mariátegui observa ainda que os fazendeiros devedores dos comerciantes e investidores financeiros estrangeiros acabam realizando um papel deliberado de intermediação para submeter a propriedade fundiária peruana ao controle desses. Ou seja, serviam de intermediários ao capital anglo-saxão para lhe assegurarem a exploração de campos cultivados com mão de obra indígena superexplorada e miserável (Mariátegui, 1979, 49).

Com base na constatação de que no Peru, a despeito dos princípios liberais da legislação, subsistiam ainda formas e instituições próprias de uma economia feudal, Mariátegui sustenta que o ponto de partida formal e doutrinal de uma política agrária socialista deveria ser uma lei de nacionalização da terra (Mariátegui, 1972, 108). Uma nova política agrária deveria tender, ainda, para o fomento, desenvolvimento e proteção da comunidade indígena. O autor chama a atenção para a potencialidade do “ayllu”, “célula do Estado incaico” sobrevivente ainda, a despeito dos ataques da grande propriedade, de converter-se gradualmente em organização do Estado socialista moderno (Mariátegui, 1972, 110).

Em atenção ao desenvolvimento individual para a vida produtiva no campo com caráter autônomo e voltado para a diminuição das contradições entre este e os centros urbanos, Mariátegui propõe o ensino agrícola amplo organizado pelo Estado, com a máxima difusão desse ensino para as massas rurais. Tal difusão massiva deveria ocorrer na forma de escolas rurais primárias e escolas práticas de agricultura, ou “granjas-escola”. A instrução das crianças do campo deveria, assim, possuir um caráter claramente agrícola (Mariátegui, 1972, 111). Ou seja, percebe-se a clara preocupação do autor com a concretização da unidade trabalho-educação numa perspectiva classista, unidade que não se daria nos moldes funcionais ao capital, para a exploração de mão-de-obra barata após um ciclo escolar voltado à instrução técnica para um mercado de trabalho precarizado, mas, ao contrário, uma educação que encarnaria os ideais da Praxis no sentido da III tese sobre Feuerbach9.

É importante ressaltar que Mariátegui –sem cair num romanticismo do qual era criticado, num culturalismo autóctone, tampouco em uma perspectiva eurocentrista– defende a reconstrução peruana sobre a base do índio, sem procurar transplantar modelos de desenvolvimento europeus para o subcontinente:

Y su indigenismo no es una especulación literaria ni un pasatiempo romántico. No es un indigenismo que, como muchos otros, se resuelve y agota en una inocua apología del Imperio de los Incas y de sus faustos. Los indigenistas revolucionarios, en lugar de un platónico amor al pasado incaico, manifiestan una activa y concreta solidaridad con el indio de hoy. Este indigenismo no sueña con utópicas restauraciones. Siente el pasado como una raíz, pero no como un programa. Su concepción de la historia y de sus fenómenos es realista y moderna. No ignora ni olvida ningún de los hechos históricos que, en estos cuatro siglos, han modificado, con la realidad del Perú, la realidad del mundo. (Mariátegui, 1988, 306)

Tampouco atribuiu a alguma burguesia nacional latino-americana a tarefa de uma revolução de qualquer tipo, burguesa, nacionalista, apoiado nos preceitos marxistas e influenciado pelo debate na época e em consonância com os quatro congressos da Internacional Comunista - IC. Foi exatamente no IV Congresso da IC que foram aprovadas também as “Teses gerais sobre a questão do Oriente” que diziam que a frente única proletária seria aplicável aos países imperialistas, enquanto a frente única anti-imperialista seria adequada aos demais. O Amauta se apropriou dinamicamente das táticas de Frente Única Proletária e Frente Única Antiimperialista e ampliou o alcance da tática frentista para incorporar os indígenas, que à época compunham 4/5 dos oprimidos do país. Problematizava que a marginalidade a qual se encontravam os indígenas peruanos não se devia a uma suposta superioridade étnica, cultural, mas a uma dominação política e econômica levada a cabo pelas classes dominantes principalmente pela dominação territorial (Mariátegui, 1979; Mariátegui, 2011). Pensa a questão da frente única anti-imperialista e, posteriormente, de classe, (assim como o tema da hegemonia) desde uma perspectiva leninista e gramsciana, incluindo no seu programa político reivindicações que contemplem outras categorias de trabalhadores, conquistando, desta forma, o apoio das classes aliadas.

Mais do que um ajuste na práxis frentista, esta ampliação exigiu esforços teóricos de compreensão da economia, política e culturas presentes no território peruano. Como decorrência prática de sua estadia na Europa concentradamente na Itália, ao retornar ao Peru, em 1923, esforçou-se em elaborar o programa e o partido da revolução no país, compreendido como parte da economia capitalista mundial. Seu propósito era unir a tarefa de compreender a realidade peruana, contribuir para a organização do proletariado como classe consciente e impulsionar as lutas indígenas e camponesas em unidade com o programa socialista. Restava às classes subalternas –composta em grande parte por indígenas– pensar estrategicamente como poderiam se organizar politicamente para se defender e também contra-atacar. O proletariado não deveria ser mero espectador das crises capitalistas mundiais. Era fundamental demonstrar através da sua experiência e fontes teóricas que mesmo uma crise que acontecia e tinha seu estopim na Europa determinaria os rumos do proletariado mundial. Essa era uma necessidade ainda maior entre os intelectuais revolucionários, de vanguarda.

Durante a Revolução Russa ampliaram-se as alianças entre os impérios e os partidos burgueses, unidos pelo medo da ameaça soviética, que mobilizou também as forças reacionárias no subcontinente latino-americano. Mariátegui propunha já em fins da década de 1920 um marxismo latino-americano concreto, que romperia com o sistema capitalista pela revolução socialista através da luta de classes, com o índio entendido como parte da frente única de classe. Sua elaboração teórica e seus intentos organizativos, em um “período de enrijecimento do debate político na Internacional Comunista (IC)”, buscou inspiração no pensamento de Lênin e nas discussões do segundo congresso da IC, que pautavam a questão colonial e nacional, bem como a necessidade revolucionária de rejeitar as ilusões pequeno-burguesas nacionalistas, sendo marcante o posicionamento leninista da política de frente única de classes, reaproximando classe operária, campesinato e partido, uma composição teórico-política que também inspirou o socialista peruano (Carvalho e Aguiar, 2013, 108). Seria a partir dessa aproximação com o marxista russo que Mariátegui declararia que o socialismo no Peru não deveria ser “calco y copia” (Mariátegui, 1971, 249)10.

Conclusões: o debate sobre a atualidade da estratégia revolucionária e o pensamento de Mariátegui

Na América Latina, além do combate às incipientes insurreições, tentou-se barrar a evolução de alguma perspectiva teórica que fosse de encontro ao que impunha o capitalismo personificado na Europa, principalmente na Europa Ocidental, como centro de poder e saber mundial. Questões políticas como organização, aliança de classe e o interesse por problemas sociais por parte dos intelectuais da época fizeram com que se fomentasse o debate sobre a aplicação do pensamento marxista na América Latina, onde, sem dúvidas, Mariátegui foi precursor. Ao destacar-se também as divergências entre diferentes grupos socialistas, a revolução de outubro aparecia como a escola para a classe revolucionária.

Entendemos, por conseguinte, que Mariátegui procurou traduzir e adaptar métodos leninistas para a América Latina, ressaltando-se a crítica feita por Lênin em seu testamento político, aos erros no trato da questão nacional na Geórgia, conduzidos por Stalin, guiado por uma aversão ao “social-nacionalismo”.

Desenvolve seus ensaios teóricos e formulações sobre qual fração subalterna lideraria uma frente única anti-imperialista e, posteriormente, uma frente única de classe diante um processo revolucionário, uma análise que Lênin realizou na Rússia ao concluir que sem o apoio dos camponeses não haveria revolução possível num país com grandes porções de trabalhadores camponeses submetidos à situação de semi-servidão.

A partir de uma análise da realidade concreta do Peru da época, descrevia criticamente a situação do país e do subcontinente, apontando, também, soluções para o problema do índio, sem cair no culturalismo como propunha algumas escolas literárias. De fato, pretendia olhar, observar e entender o Peru para então organizar operários, camponeses e indígenas e depois formar um partido socialista. Apontava nos Siete Ensayos que o problema do índio não poderia estar restrito ao aspecto cultural, como hoje algumas correntes –incluindo os autores pós-coloniais– pretendem sublinhar. A subordinação do marxismo às questões éticas e raciais encobrem justamente a necessidade de se acabar com essa exploração através da luta política entre classes. Estudar esses processos e trazê-los para o debate contemporâneo é relevante, entre outros aspectos, por nos permitir analisar criticamente governos que recuperam discursos nacional-desenvolvimentistas e que voltaram à cena política há cerca de duas décadas, reavivando velhas ilusões enquanto incontáveis lutas das nacionalidades autóctones defendem o que restou de seus territórios e resistem ao genocídio em alguns países da América Latina.

Sabemos que nos últimos decênios o subcontinente latino-americano experimentou um intenso momento de lutas, ilustrando algumas transformações no cenário político regional. O triunfo eleitoral de Hugo Chávez na Venezuela em 1998, o fracasso da ALCA (Área de livre comércio das Américas) e, em contrapartida, o projeto de construção da ALBA (Aliança Bolivariana para os povos de nossa América), o estopim da crise capitalista em 2008 e as lutas por nacionalizações na Bolívia e Equador seguidas pela primeira ascensão presidencial de Lula da Silva (2002), Evo Morales (2005) e Rafael Correa (2006), sinalizavam mudanças na geopolítica da América Latina. São governos que articularam institucionalidade e pautas nacional-populares num projeto de caráter heterogêneo e continental e que reascenderam –ao menos em discurso– na dimensão política uma tentativa de ruptura com as estruturas de poder e cultura antidemocrática que minavam a credibilidade das instituições políticas locais, trazendo a substituição das constituições em vigor e renovação dos quadros políticos dirigentes.

Os governos nacional-populares latino-americanos, na ausência de uma caracterização mais adequada, inauguraram, assim, uma agenda de alternativa política às estruturas de poder vivenciadas desde a terceira onda democrática em meados da década de 1980 e que se instalam no aparelho do Estado. É importante lembrar que mesmo antes da crise capitalista que eclode no centro imperialista estadunidense, a América Latina aparecia como um subcontinente em ebulição, onde vários movimentos sociais despontaram na cena política na última década do século passado, tendo como exemplo as pioneiras rebeliões zapatistas em 1994, no México e a atuação dos piqueteros, na Argentina à mesma época, assim como na resistência dos mapuches no Chile e nas inúmeras lutas das nacionalidades no Equador, Peru e Bolívia. São movimentos sociais que fundamentalmente retomam as lutas pela autonomia das etnias, pela libertação nacional, e, principalmente, pela nacionalização dos recursos naturais.

Nosso debate está vinculado à ideia de que a constituição de uma nova sociedade e de um novo homem, como falaria Ernesto “Che” Guevara, pensando uma nova hegemonia em termos gramscianos, implica uma transformação para uma nova estrutura econômica, nova organização política e também nova orientação ideológica e cultural. Essa reflexão recupera uma preocupação já trazida por alguns marxistas latino-americanos que procuravam analisar as especificidades do subcontinente, e partimos do pressuposto de que o exemplo emblemático é Mariátegui, figura política marcante no debate marxista da década de 1930 e que apresentou consequências para o socialismo mundial. Justamente por suas rupturas com um essencialismo latino-americano e com uma corrente hegemônica no marxismo, assumindo, por outro lado, a característica leninista de “territorializar” o marxismo.

Problematizou, dentre essas particularidades latino-americanas, fundamentalmente o problema da raça na América Latina e o desenvolvimento econômico-político dos indígenas, premissa que exigiu esforços teóricos de compreensão da economia, política e culturas presentes no território peruano.

O Amauta conferiu destaque à forma de organização política dos soviets, a grande riqueza da experiência popular bolchevique, à universalidade de aspectos centrais da revolução russa como a preocupação com os temas da educação e da cultura, investindo na formação política do partido revolucionário de massas, partindo da observação e experiência de cada situação concreta. A preocupação era como preparar uma estratégia revolucionária para a vitória dessa frente única, cuja direção estaria nas mãos operárias revolucionárias, a vanguarda mais avançada e temperada nas lutas.

Em meio à autenticidade das interpretações de Mariátegui sobre a realidade peruana e mundial, assim como sobre os possíveis caminhos ao socialismo, destacam-se as relações com o movimento operário mundial, sobretudo nas aproximações com a III Internacional e nas tensões estabelecidas a partir do processo de estalinização desta organização, assimilando as lições dos soviets –principal instrumento de frente única política dos operários– na Rússia contra os oportunistas. Seriam também os soviets o instrumento de ligação orgânica entre o partido. Não se trata, para o autor peruano, de fetichismo soviético, mas de trazer teoricamente e objetivamente a Revolução Russa e a defesa do bolchevismo em seu plano de ideias e ações.

Importante também para Mariátegui seria a necessidade do proletariado e camponeses peruanos, latino-americanos, conhecerem a situação mundial, principalmente conhecer por meio de uma imprensa que tenha compromisso ideológico com essa classe. Delegava pontual relevância ao fato de grupos socialistas e sindicalistas possuírem seus próprios instrumentos de cultura popular, como forma de contagiar o povo pelo interesse do estudo da crise, da situação mundial.

Frente aos novos processos da luta de classes a se desenvolver contemporaneamente, num contexto de crise capitalista mundial e avanço de uma direita política mais ortodoxa e conservadora, se faz necessário um retorno da reflexão estratégica ao passo que a contribuição do autor traz o alerta da inviabilidade das direções pequeno-burguesas ou de contar com frações burguesas como aliadas no combate ao imperialismo. Mariátegui permanece como leitura nevrálgica em um contexto de necessidade de se avançar na organização da resistência e de reavivar as inúmeras lutas das nacionalidades originárias que resistem ao genocídio na América Latina e decisivamente no Brasil.

Notas

1. Em referência ao periódico italiano dirigido por Gramsci, a experiência ordinovista aqui retratada dimensiona os diversos momentos do L’Ordine Nuovo, ou seja, o movimento de revista de cultura operária até o terreno onde se criou as premissas para o desenvolvimento de um partido da mesma classe.

2. A palavra Amauta, que em quéchua significa pensador, mestre, sábio, se tornou também apelido de Mariátegui.

3. O movimento estudantil que se iniciou em 1918 com a luta dos estudantes de Córdoba pela reforma da universidade assinala o nascimento de uma nova geração latino-americana, proporcionando uma agitação posterior em outros países. Não se tratando de um movimento restrito à universidade, partindo da ideologia e inspiração revolucionária da Revolução Russa, a greve geral iniciada pelos estudantes da cidade argentina de Córdoba contra a aristocracia local continha fundamentalmente três reivindicações: a participação dos estudantes no governo das universidades, a inserção dos povos latino-americanos e sua história na mesma, e a modernização do sistema universitário, onde o corpo docente não tinha representação, não se renovava e carecia de liberdade de cátedra (Manifiesto de la F. U. de Córdoba, 1918). Partia-se do conhecimento da realidade local e regional, para se construir a partir de um vínculo dialético uma filosofia capaz de oferecer-se como arma intelectual ao proletariado. Falava-se numa reforma que perpassasse pelo âmbito da filosofia porque precisamente nessas classes médias se encontraria a conexão com seu papel na história. Conforme afirmava Marx na Crítica à filosofia do direito de Hegel, a filosofia encontraria no proletariado suas armas materiais, enquanto o proletariado encontraria na filosofia suas armas intelectuais (Marx, 2005, 156).

4. Presentes em todos os Andes da região da América do Sul, os ayllus permanecem como uma experiência auto-organizativa principalmente na Bolívia e no Peru. Andrade, ao descrever a experiência dos ayllus na Bolívia, indica que se tratava de um “sistema de autoridades” que “engloba funções governativas e auxiliares/especializadas”, lembrando ainda que nesse regime as autoridades são eleitas por sistema rotativo (Andrade, 2002, 21).

5. Após a realização do primeiro congresso nacional de estudantes peruanos realizados na cidade de Cusco, em 1920, foi aprovada a criação das Universidades Populares González Prada.

6. “Durante o período do caudilhismo militar, em vez de se fortalecer o demos urbano, foi a aristocracia fundiária que se robusteceu. Estando o comércio e as finanças em poder de estrangeiros, o surgimento de uma vigorosa burguesia urbana não era possível” (Mariátegui, 1979, 47).

7. Representante de uma das correntes internas da socialdemocracia com respeito ao problema agrário, Maslov propunha a “alienação” das terras dos grandes proprietários no âmbito de uma nacionalização limitada aos governos provinciais, e levada a efeito por esses governos apenas parcialmente.

8. Nesse quesito, Mariátegui distinguia, nas condições materiais concretas e particulares de seu país, por exemplo, a questão racial, ou seja, o pertencimento étnico às variedades indígenas peruanas como um elemento a mais que podia ser trabalhado politicamente a favor da constituição daquela base de massas.

9. “A doutrina materialista sobre a modificação das circunstâncias e da educação esquece que as circunstâncias são modificadas pelos homens e que o próprio educador tem de ser educado. Ela tem, por isso, de dividir a sociedade em duas partes –a primeira das quais está colocada acima da sociedade. A coincidência entre a alteração das circunstâncias e a atividade ou automodificação humanas só pode ser apreendida e racionalmente entendida como prática revolucionária” (Marx e Engels, 2007, 533).

10. “No queremos, ciertamente, que el socialismo sea en América calco y copia Debe ser creación heroica. Tenemos que dar vida, con nuestra propia realidad, en nuestro propio lenguaje, al socialismo indoamericano. He aquí una misión digna de una generación nueva”. (Mariátegui, 1928).

Referências

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Danilla Aguiar (jdanillaaguiar@hotmail.com): Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG/Brasil). Docente do Departamento de Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas PRÁXIS: Estado e Luta de Classes na América Latina (UFCG/CNPq/Brasil) e do Laboratório de Educação Aplicada às Novas Tecnologias e Estudos Étnico-Raciais/LENTE (UFRN/CNPq/Brasil). Organizou, em parceria com Dr. Gonzalo Rojas, o livro estado, governos “pós-neoliberais” e luta de classes na América Latina: a agonia dos atalhos nos caminhos da mudança social, EDUFCG, 2019.

Leandro Galastri (leandrogalastri@gmail.com): Doutor em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP/Brasil). Docente do departamento de Ciência Política e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais na Universidade Estadual Paulista (UNESP). Autor do livro Gramsci, marxismo e revisionismo, Autores Associados, 2015. Editor do blog marxismo21.

Recibido: 13 de setiembre de 2020

Aprobado: 20 de setiembre de 2020


Rev. Filosofía Univ. Costa Rica, LX (156), Enero-Abril 2021 / ISSN: 0034-8252 / EISSN: 2215-5589