Renata Bastos da Silva
Ricardo José de Azevedo Marinho

A Biologia do Fascismo por José Carlos Mariátegui

Resumo: As análises do fundador da revista Amauta, o peruano José Carlos Mariátegui, foram precisas quanto ao surgimento do fascismo na Itália e para além dela. Findo a Grande Guerra, Mariátegui esteve na Itália no início de 1920, em um exílio disfarçado, imposto pelo governo de A. B. Leguía.

Palavras-chave: Biologia. Mussolini. La escena contemporánea. Fascismo. Crise da democracia.

Abstract: The analyses of the founder of Amauta magazine, the Peruvian José Carlos Mariátegui, were accurate as to the emergence of fascism in Italy and beyond. After the Great War, Mariátegui was in Italy in the early 1920s, in an undercover exile imposed by the government of A. B. Leguía.

Keywords: Biology. Mussolini. La escena contemporanea. Fascism. Crisis of democracy.

Introdução

A análise de Mariátegui do fascismo é filha do seu tempo. Sua originalidade e sua capacidade de compreensão encontram-se devidamente inseridos na história dos primeiros passos da experiência fascista na aurora dos anos vinte do século passado. Assim, há um grande avanço na visualização da base de massa do movimento fascista bem como a percepção completa do aberto caráter que assumiria o regime fascista. Mariátegui vai, passo a passo, realizando um trabalho singularíssimo de sistematização de uma reflexão sobre o fascismo, reunindo os elementos, em movimento e regime em La escena contemporánea (1925).

Na verdade, o pensamento de Mariátegui sobre o fascismo vai se tornando cada vez mais complexo, vai progressivamente se concretizando pari passu ao seu desenvolvimento histórico, entre 1919 e 1925. Assim, em 6 de fevereiro de 1920, nas páginas do jornal El Tiempo de Lima, o intelectual peruano começa a publicar as “Cartas de Italia”, uma série de artigos que guardariam esse título, onde ele se pergunta e responde sobre o que é o fascismo, o que quer e o que se propõem.

Importa ainda reter que quando Mariátegui volta ao Peru é convidado por Haya de la Torre para dar aulas na Universidade Popular González Prada de Lima. Começou suas conferências intituladas “História da crise mundial”, sobre a conjuntura política internacional, em junho de 1923, com uma audiência repleta, em sua maioria, trabalhadores. Na ocasião, tentará mostrar aos trabalhadores as limitações de um ampla gama de concepções, criticará os anticlericalismo, a imprensa do país e a falta de bons professores e de grupos intelectuais que fossem “donos de instrumentos próprios de cultura popular e aptos, portanto, para criar no povo interesse no estudo da crise”. Nesse sentido, considerará como missão das Universidades Populares a constituição de uma cultura a altura de sua época (Vegas, 1989, 43-46).

A partir daí, Mariátegui vai tornando-se a figura de esquerda mais conhecida e importante do país. No dia 2 de novembro de 1923, pronunciava na Federação de Estudantes do Peru sua décima quinta conferência intitulada Internacionalismo e nacionalismo, nela está presente uma ideia que tratará em detalhes no primeiro ensaio do livro La escena contemporánea. Ao longo dos anos, sua casa transforma-se no principal local de encontro de intelectuais, artistas, operários e estudantes. Em janeiro de 1924, dá seu último curso na Universidade Popular. Poucos meses depois terá a sua primeira perna amputada.

Portanto, em nosso artigo exploramos o legado analítico de Mariátegui do fascismo e argumentamos que sua atuação política e intelectual tem algo a nos dizer sobre as questões e os dilemas com que nos debatemos hoje e, antes de tudo, sobre o modo como temos praticado (ou não) a inclusão social e buscado construir um processo civilizatório que incorpore todas e todos. Por outro lado, para atualizar o tema da discussão sobre a Biologia do Fascismo, recorremos ao romance documental de Scurati, ou seja, o livro intitulado M, O filho do século, publicado em 2018, o qual nos revela, através de documentos históricos, as ideias e as ações do líder fascista Benito Mussolini.

Biologia do Fascismo

A biologia da contrarrevolução achava lugar propício para sua expansão diante da fragmentação entre a democracia, o socialismo e a Revolução bolchevique. Duas concepções de vida, duas escolhas, foram colocadas na cena contemporânea: uma ruptura com os pressupostos do Tratado de Versalhes –o qual pois fim formal à Grande Guerra (1914-1918)–, aliada à ascensão do liberalismo democrático e da Revolução do proletariado, ou, a insistência ao culto da identidade da busca pela purificação das raças, na ilusão de cultivar uma civilização que acabava. A decadência da antiga civilização que hegemonizou o mundo por alguns séculos era um fato; o surgimento de uma nova concepção de vida também era perceptível. Portanto, na disputa pela hegemonia, aquela conjuntura exprimia a disjuntiva clássica: o Novo surgia e o Velho persistia em ofuscar seu caminho (Silva, 2019, 99).

A Revolução Russa insuflou nos segmentos sociais e políticos, identificados com as propostas de esquerda, um ânimo guerreiro. Contudo, ao fenômeno bolchevique seguiu-se o fenômeno fascista. No período pós-bélico surgiu, proclamado ao mundo pela marcha sobre Roma, a biologia do fascismo, a contrarrevolução como reação a revolução. O futurismo passadista do fascismo impulsionaria a sociedade italiana a apoiar um regime autoritário em troca de uma suposta estabilidade real. O conflito entre classes antagônicas –burguesia e proletariado– parecia ter ficado cada vez mais nítido, tomando proporções internacionais jamais assistidas pela humanidade.

Diante desta conjuntura, ciente desta problemática, Mariátegui publica, em 1925, seu primeiro livro, La escena contemporánea, resultado de seus artigos sobre os temas internacionais (Silva, 2019, 102).

Posteriormente, John Maynard Keynes publicou no Manchester Guardian uma carta de Piero Sraffa que denunciava a política autoritária do regime fascista, através do anúncio da prisão arbitrária do deputado comunista Antonio Gramsci. Esta carta de Sraffa foi publicada no Manchester Guardian de 24 de outubro de 1927, sob a rubrica Correspondência, com o título de: Os métodos do fascismo. O caso de Antonio Gramsci (Silva, 2019, 104). No início da carta Sraffa destacou que:

(...) face ao debate que tem sido travado em suas colunas a propósito dos métodos do fascismo, parece-me oportuno trazer ao conhecimento dos seus redatores os fatos de um caso recente, que, decididamente, pode ser incluído na classificação feita por Mr. Shaw dos crimes justificados pela 'necessidade'. Antonio Gramsci, um jornalista e deputado comunista perante o Parlamento Italiano, foi preso em novembro de 1926, a despeito das imunidades concernentes a um deputado, e banido, juntamente com outros elementos da Oposição, para a ilha italiana de Ústica. (Gramsci, 1991, 391-393)

Podemos, então, concluir que Keynes empreendeu uma política de repúdio aos métodos fascistas. Da mesma forma, Mariátegui preocupou-se com o problema no primeiro ensaio, de La escena contemporánea, que foi intitulado Biologia do Fascismo. Nele, fez um exame dos princípios que geraram o fascismo e que apoderaram do cotidiano da população civil, em resposta a crise dos Estados-Nações. Entretanto, a crise da democracia foi mais que isso. Foi fruto do esgotamento das relações sociais capitalistas do século XIX, das disputas entre os Impérios que levaram a humanidade a Guerra Total (Silva, 2019, 104).

Na perspectiva de Mariátegui, no período do imediato pós-guerra os sentimentos de decepção com a paz internacional eram propícios a uma violenta reação nacionalista e formou a raiz do fascismo. Desse modo, uma das nações vencedoras não se contentava com as decisões da Conferência de Paz: a Itália (Silva, 2019, 105).

Para a Itália, as resoluções do Tratado de Versalhes não reconheciam sua efetiva participação na contenda como parte da frente aliada. Ao mesmo tempo, os Aliados, ainda, cobravam as dívidas italianas contraídas durante a guerra –principalmente a Inglaterra (Silva, 2019, 105).

Surgiu de uma facção advinda do Partido Socialista Italiano (PSI) a crítica da condução do governo italiano na Guerra e na Paz. Nos referimos as ideias de, entre outros, Benito Mussolini, político italiano advindo do PSI, que rompeu com esse movimento quando estourou a Guerra –tornando-se, posteriormente, um dos líderes do fascismo. O movimento socialista italiano era contra a guerra e manteve-se neutro durante o conflito - nesse caso, Mussolini, desde o início, foi a favor da neutralidade ativa italiana no conflito bélico. Sendo assim, o fascismo foi uma emanação da Guerra (Silva, 2019, 105).

A camada média italiana, ademais, encontrava-se distante e adversária da classe proletária. Não perdoava sua modalidade de neutralismo durante a Guerra. Não perdoava os altos salários, os subsídios do Estado, as leis sociais que durante a guerra e depois dela haviam conquistado mediante o medo, que a sociedade tinha, da revolução. Por conseguinte, ela encontrou em Mussolini e nos camisas negras os atores políticos que expressassem sua indignação e defendessem o patriotismo (Silva, 2019, 105).

Segundo Mariátegui, Mussolini foi o organizador, o condottiere do fascismo, porém não foi seu criador, não foi seu artífice. Esse sicofanta italiano passou do dito socialismo mais extremo para o conservadorismo mais extremo. Suas análises econômicas, por exemplo, eram adversas a uma política de intervencionismo, de estatismo, de fiscalismo. Não aceitava o tipo transacional de estado capitalista; acreditava que a solução para a recessão econômica era restaurar o tipo clássico de estado, arrecadador, policial e autoritário. Sua troca de uma posição à outra não fez parte de um processo. O motor desta troca de atitude ideológica não partiu da ideia, mas do ressentimento. Mussolini, na política, na imprensa, não foi nunca um teórico nem um filósofo senão um retórico. Mussolini passou do socialismo ao fascismo, da revolução à reação, por uma via sentimental, não por uma via conceitual.

No entanto, Mariátegui apontava D'Annunzio, poeta e dramaturgo italiano, como um dos criadores do estado de ânimo no qual havia-se incubado e plasmado o fascismo. O pensador peruano observou que a história tem como um dos seus assuntos nucleares a política e não a poesia. A política que reclama de seus atores um contato constante e metódico com a realidade, com a ciência, com a economia, com coisas que as vezes, alguns, poetas desconhecem e desdenham. Mas naquela situação, a Guerra foi terreno propicio para o renascimento do Herói, do Mito da Ação, do neo-romantismo, a política cessa de ser ofício sistemático que se vale da ciência. Por isso, D'Annunzio obteve espaço na política contrarrevolucionária. No entanto, o poeta, ondulante e arbitrário, não podia imobilizar-se dentro de uma seita nem se ligar a um grupo. Não era capaz de marchar com a reação nem com a revolução. Menos ainda era capaz de afiliar-se à eclética e sagaz zona intermédia da democracia e da reforma. Todavia, sem D'Annunzio ter sido consciente e especificamente reacionário, a contrarrevolução era paradoxalmente e enfaticamente d'annunziana. Na Itália, segundo Mariátegui, o país da eloquência e da retórica, a reação necessitava erguer-se sobre uma base suntuosamente decorada pelos frisos, o baixo relevos e a volúpia da literatura d'annunziana (Silva, 2019, 107).

Mariátegui, desse modo, destacou a identificação de alguns intelectuais italianos com o fascismo. Principalmente os que participavam do movimento artístico chamado de futurismo que caracterizou o episódio do fenômeno d'annunziano outro dos ingredientes psicológicos do fascismo. A contrarrevolução mobilizava à inteligência e invocava a cultura (Silva, 2019, 107).

O pensador peruano destacou a adesão de Luigi Pirandello dramaturgo e novelista siciliano ao fascismo. Segundo Mariátegui, Pirandello possuía um grande gênio literário, mas tinha pouca sensibilidade política. Autor do clássico Seis personagens em busca de um autor, a obra desse dramaturgo, para o pensador peruano, foi a tradução artística mais fiel e mais potente do drama da alma desencantada da humanidade do pós-guerra (Silva, 2019, 107).

A batalha fascista, como observou Mariátegui, não se limitou as fronteiras italianas. A contrarrevolução tomava outras formas em diversas nações. Mariátegui destacou o caso do Diretório espanhol. Referia-se, ao Diretório constituído pelo general Miguel Primo de Rivera, depois da instauração da ditadura militar que seguiu ao pronunciamento de 13 de setembro de 1923 e que se manteve até 1930. Entretanto, segundo o pensador peruano, não se podia estudar a reação do Diretório como uma simples tradução espanhola do fascismo. Pois, o regime fascista havia substituído na Itália, aparentemente um regime parlamentar e democrático muito mais enraizado e efetivo, que o embrionário, fictício, liquidado e/ou simplesmente interrompido, na Espanha, pelo general Primo de Rivera (Silva, 2019, 108).

A Espanha era um país de industrialismo limitado, de agricultura camponesa, de economia atrasada. Os intelectuais e os militares espanhóis coincidiam em suas observações no que tange a constatação da incompetência do antigo sistema, que persistia no retardamento da economia espanhola. Os intelectuais haviam julgado a antiga classe governante inepta para adaptar-se à nova realidade histórica; os militares a haviam julgado inepta para defender-se dela. Os intelectuais condenavam às diversas facções liberais; porém não propuseram a exumação das facções absolutistas, tradicionalistas. Declaravam-se descontentes e queixosos do presente, mas não sentiam nostalgia do passado. Nessa experiência, os intelectuais não haviam saudado aos generais do Diretório como aos representantes de uma classe política vital senão como aos sepultadores de uma classe política decrépita (Silva, 2019, 108).

Mariátegui concluiu que na Espanha o governo reacionário não brotou de uma corrente organizada da opinião cidadã, não teve apoio da sociedade civil. A reação espanhola, em suma, careceu de elementos psicológicos e políticos necessários para formar um séquito intelectual importante. Por conseguinte, embora o Diretório tivesse na Espanha a mesma função histórica que o fascismo na Itália, eram, segundo Mariátegui, de estrutura e potência diferentes. Na Itália foi vigoroso e original, na Espanha anêmico e caricaturesco. O fascismo foi um partido, um movimento. O Diretório foi um clube de generais.

Nessa perspectiva de movimentação e transformação da sociedade europeia, achava-se a impressão forte que havia causado a intervenção norte-americana na Guerra e no pós-guerra no que tange as questões estruturais fundamentais. Deste modo, convergimos com a hipótese de Gramsci de que o americanismo na Itália se exprimiu através do movimento fascista. Por isso, as análises do novelista italiano, Pirandello quanto ao tema da ascensão da civilização norte-americana. Esse dramaturgo observava, dentro de uma interpretação estrutural, que a economia mundial estava sendo direcionada pelo capital norte-americano. O peso da produção econômica norte-americana, principalmente após a Guerra, impulsionava a mudança na ordem econômico-social da Europa e do mundo. Pirandello apontava a discussão sobre o impacto do americanismo na cultura europeia. Salientava que se tratava de um prolongamento orgânico das transformações estruturais. Pirandello, então, considerava ainda que o americanismo havia encontrado na Alemanha um acolhimento imediato, enquanto na França tinha uma oposição veemente. No ponto de vista de Pirandello, isso se dava visto que as camadas médias alemães já haviam sido arruinadas pela guerra e pela inflação, e a indústria apresentava características diversas da parisiense. As camadas médias francesas não tinham sido atingidas pelas crises ocasionais, com o mesmo ritmo acelerado registrado na Alemanha (Silva, 2019, 110).

Pode-se fazer uma analogia dessas observações com a discussão sobre as duas concepções de vida que Mariátegui distinguiu. O período pré-bélico, caracterizado como belle époque pela burguesia parisiense havia terminado. O ritmo de vida havia mudado após a Guerra. A sociedade fordista norte-americana e a Revolução Russa foram fatos que impeliram a mudança na concepção de vida. O fascismo sintetizou essas alterações e com isso empreendeu a contrarrevolução (Silva, 2019, 110).

Tendo em vistas essas análises, entendemos que Mariátegui percebeu que a América do Norte começava a surgir como a futura direção do mundo. Não foi sem propósito a sua observação das expectativas, principalmente as europeias, que se voltaram à participação norte-americana na condução da Conferência de Versalhes (Silva, 2019, 110).

Mariátegui menciona o parecer de Keynes sobre o primeiro ministro inglês. Para Keynes, Lloyd George errou em sua política de sustentação do Tratado de Versalhes. Ao apoiar um tratado insensato que constituiu um perigo para a sociedade europeia e colocando em risco sua condução democrática. Deste modo, dava passagem para a biologia do fascismo cooptar uma sociedade em crise (Silva, 2019, 114). Mariátegui destacará que:

Keynes em suas novas considerações sobre as consequências econômicas da paz comenta assim esta gestão: Lloyd George tem assumido a responsabilidade de um tratado insensato, inexecutável em parte, que constituía um perigo para a vida mesma da Europa. Pode alegar, uma vez admitidos todos seus defeitos, que as paixões ignorantes do público jogam no mundo um rol que deve ter em conta quem conduz uma democracia. Podem dizer que a Paz de Versalhes constituía a melhor regulamentação provisória que permitia as reclamações populares e o caráter dos chefes de Estado. Pode afirmar que, para defender a vida da Europa, tem consagrado durante dois anos sua habilidade e sua força a evitar e moderar o perigo”. (Mariátegui, 1987, 53)

M, o filho do século

Em setembro de 2018, o filosofo italiano Antonio Scurati publica M, o filho do século, o primeiro volume de uma tetralogia sobre Benito Mussolini que pretende contar essa história de 23 de março de 1919 –o dia da fundação do Fasci di Combat– a 1945.

M, o filho do século é um romance documentário histórico que narra a ascensão ao poder de Benito Mussolini. O romance ganhou o Prêmio Strega 2019 da Fundação Bellonci. O volume de mais de 800 páginas vendeu mais de 120.000 cópias na Itália e alcançou extraordinário sucesso de público e crítica. Embora seja um romance, todos os eventos são documentados historicamente e acompanhados de fontes originais.

O retrato de um déspota esclarecido doente de vaidade e ambição, uma imitação de Augusto e seus feitos e de Napoleão e seus gestos. Eis o Mussolini de Antonio Scurati, o autocrata nascido de uma conjuntura histórica em que o medo da revolução de 1917 se juntou ao descontentamento das classes médias castigadas pela Grande Guerra em buscar acomodação na plutocracia da burguesia industrial e dos latifundiários, como mostra Mariátegui e posteriormente a historiografia do século XX. Personagem que acende um fogo artificial e que se dizia redentor e que acabaria por condenar a Itália às trevas do fascismo. Ele nasceu com o intuito de ser um paladino e morre como uma marionete. E enquanto se fingia de estadista, tecia sua imagem de boneco vociferante, braços na cintura, olhar inóspito com aqueles olhos malucos e socos no peito, com a virilidade daquele corpo plebeu e ultrajante de animal caçado, imitação ridícula de um César sonhado que deu em nada. No grande teatro do mundo foi um péssimo ator muito bem retratado no filme Sono tornato (2018) de Luca Miniero.

Tudo decorre, como bem mostra Mariátegui, da impotência italiana diante das potências que teceram o Tratado de Versalhes que avidamente contemplam as ruínas da Europa após uma guerra de heroísmo infundado e estúpidas e vãs razões de Estado. Tudo nasce de um punhado de insurgentes insatisfeitos, de oficiais que não se resignam a perder o comando para voltar à mediocridade cotidiana, de funcionários medianos que temem que a revolução de 1917 arrebate para sempre os altos níveis de miséria alcançados com brandura e probidade, de exaltados poetas laureados que se aproximam da boa sombra do poder, de carreiristas e de veteranos frustrados. Todos são conduzidos à dita terra prometida de glória duvidosa por um suposto visionário sedutor, Il Duce, a pequenos burgueses, sugadores de tinta que se sentem insultados pelos sapatos novos da filha do camponês defendidas por Giacomo Matteotti, curvado de repente empunhando estacas, dândis, aristocratas benevolentes como madame Margherita Sarfatti, aventureiros e ressentidos do regime obsoleto de uma Itália cansada e desacreditada que concorda quando Mussolini proclama em 1922 que o século da democracia morre em 1919-1920. O estado liberal é uma máscara atrás da qual não há rosto.

Filippo Marinetti, um ideólogo gesticulante do futurismo, criou uma parafernália cultural que daria à duvidosa ética política do Duce (líder), uma estética oficial. Curzio Malaparte deturpa uma verdade já enganosa. D’Annunzio gosta de brincar de imperialismo de bolso e de uma revolução opereta. Kafka, confinado em um sanatório alpino enquanto nasce o fascismo que parece intuir, anota em seu diário que na luta entre o indivíduo e o mundo é preciso sempre apostar no mundo.

M, o filho do século é o primeiro volume de uma tetralogia concebida para elevar ao palco a representação do drama da ascensão e queda da visão fascista de Mussolini: a primavera do patriarca. Um empreendimento gigantesco amparado por centenas de leituras que comprovam a veracidade e enriquecem a história com fragmentos de cartas, citações de artigos da imprensa da época, cartazes e grafites, parágrafos de discursos e arengas, canções de guerra, artigos, circulares e notas da imprensa organizada como peças de colagens de Juan Gris ou Georges Braque que triunfou nesses mesmos anos 1920, e gravou com precisão notarial, mas sempre subordinada à justificativa da literatura, que aqui brilha porque o professor Antonio Scurati conhece o ofício que ensina e escreve com o necessário distanciamento irônico e a introspecção na intimidade de seu protagonista que compensa quem opta por usar o ponto de vista dos fascistas, escolha que o leitor não deve julgar como uma fraqueza, mas como um engano.

Scurati garante que tudo nesta história de fracassos coletivos e delírios individuais foi exaustivamente documentado, mas, rendendo-se à evidência de que toda escrita carrega uma ficcionalidade, ele se apressa em notar que a história é uma invenção para a qual a realidade acarreta seus próprios materiais. O leitor não se detém em verificações e se contenta com verossimilhanças, de que a veracidade apoia a história, mas a verdade não a melhora.

Deixando cada leitor lidar como quiser com a controvérsia inevitável que está por trás deste romance e julgue como ele preferir, haja vista a maneira como Scurati estimula a memória histórica. Aqui basta afirmar que ao se ler Mariátegui e seu La escena contemporánea estamos lendo M, o filho do século esse romance e de suas incontestáveis conquistas literárias, muitas delas fruto de uma simbiose da escrita política e um cuidadoso trabalho de pesquisa de jornais e bibliotecária, e a propensão a se espalhar em uma prosa experiente e de férteis alusões e ressonâncias literárias, A espuma dos dias (1947) de Boris Vian, a Scott Fitzgerald quando suave é a noite do outono romano, ao poder evocativo de Bassani, à força da linguagem de Beppe Fenoglio. Scurati revê a história. Como Marguerite Yourcenar, Gore Vidal, Jean Echenoz ou Javier Cercas. Impossível esquecer aqui o Autobiografia do General Franco, de Manuel Vázquez Montalbán e Eu, O Supremo, de Augusto Roa Bastos. Mas, como eles, ele está especialmente interessado em escrever bons romances. E este romance de não ficção, digno sucessor de Cesare Pavese, Elsa Morante, Gesualdo Bufalino ou Claudio Magris. O partigiano e narrador Ítalo Calvino teria adorado.

Conclusões

Não seria exagerado afirmar que a discordância de Mariátegui das teorias do “socialfascismo” e da “classe contra classe”, no transcorrer dos anos vinte até o seu falecimento em 1930, explicitada na sua proposta de luta com uma frente fundada num amplo movimento antifascista, é fruto de uma rica análise sobre a natureza em desenvolvimento do fenômeno fascista. Tal análise já se encontra esboçada nos seus escritos pós-crise Matteotti (em 10 de junho de 1924), onde se percebe que a situação política é democrática.

Este ato de extrema maturidade política representa um lampejo da esperança de Mariátegui em relação a crise planetária onde o fascismo era uma das suas manifestações e que encontrou terreno fértil na Itália. Para ele, a crise sistêmica não foi interrompida pelo fascismo.

A marca de um grande autor, como Mariátegui, está na capacidade da sua obra ter sabido não só formular uma compreensão das questões presentes em seu tempo como, bem para além delas, ter deixado um repertório de validade permanente a transcender a circunstância em que foi produzida. Na experiência de Mariátegui, envolvido como sempre esteve com os problemas da sua sociedade e de seu tempo, havia a plena consciência de que a sua reflexão, tendo como ponto de partida o aqui e o agora, não deveria se deter na casuística dos fatos presentes, mas sim sondar o que havia de universal em suas manifestações.

Embora a atenção crítica de Mariátegui se dirigisse para um elenco muito diversificado de questões, indo da literatura à política e à filosofia, passando por uma refinada intervenção em economia política, seus múltiplos objetos, contudo, sempre estavam aplicados para uma única direção: exausto o ciclo aberto pela revolução de 1917, quais as novas circunstâncias com que se confrontava a luta pela boa sociedade e que inovações teóricas eram exigidas a fim de levá-la à frente.

Se as suas referências políticas, durante a sua estadia na Europa Ocidental, vão mudando, em particular na caracterização do que deveria ser a estratégia do movimento subalterno na Europa Ocidental e no Peru em oposição àquela que tinha preponderado na Rússia, uma formação econômico-social tradicional e que se aventurou numa revolução. La escena contemporánea testemunha o triunfo teórico de Mariátegui sobre essa decisiva questão. Se na Rússia o Estado tinha muito poder, enquanto seria gelatinosa a sociedade sobre a qual se assentava, no processo do colapso das suas estruturas de poder, ele se tornava vulnerável à apropriação por parte dos seus adversários. Na Europa Ocidental e no Peru, diversamente, em razão da complexidade e da diversidade de suas sociedades, uma tentativa de conquista do poder do Estado por parte de uma força antagonista teria de se confrontar com uma rede social –as heterodoxias das tradições (Mariátegui, 1981, 161-165) (dentre as quais o fascismo, que é uma das suas várias modalidades recessivas, diversas das vias civilizatórias), no léxico de Mariátegui– com ele intimamente articula e que consistiria em um sistema de difícil derruição e que defenderia a ordem estabelecida.

Mariátegui revive no Peru, sob a forma de um pensamento refletido, o seu passado, daí extraindo teoria nova, o que lhe vai permitir observar a crise da cena contemporânea com categorias originais, instituindo um campo próprio para o estudo do processo em curso, em especial as modalidades de modernizações autoritárias, tal como em suas análises sobre a biologia do fascismo italiano. A precocidade e o alcance de sua pesquisa teórica sobre esse assunto, antecipando-se em décadas a feitos das ciências sociais contemporâneas, são bem indicados na formulação do seu conceito de heterodoxia da tradição, sua maior contribuição para os estudos dedicados à mudança social.

Com efeito, a leitura de Mariátegui frente as crises das cenas contemporâneas devem e podem ser recebidas como uma lufada de ar fresco em um ambiente saturado pela perplexidade da intelectualidade em encontrar, deixando as velhas categorias e modelos de análise a que estão afeiçoados, interpretações plausíveis para a irrupção do fascismo, que interrompeu a experiência democrática italiana. A derrota política do campo democrático italiano, surpreendente pela rapidez do seu desenlace e pelo desamparo a que foi relegada a Itália de então representada por parte da opinião pública e da sociedade civil da época, tinha deixado patente que a busca das causas de um desastre daquelas proporções deveria se orientar para a crítica das concepções reinantes sobre a natureza daquela formação econômico-social, tal como se vê agora com a ideologia nascente do dito novo normal que não passa do arquiconhecido anacrônico anormal.

Daí que sob a pressão da pandemia em curso, a linguagem de Mariátegui, da Amauta, da cooperação se universaliza, com forte intensidade na dimensão das ciências, onde se fazem presentes vigorosas denúncias do estado de coisas reinante no mundo, que adoece pelas desigualdades, pela degradação da natureza e da vida em geral. Anuncia-se assim com Mariátegui, ontem e hoje, a possibilidade de mudança nas coisas do mundo.

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Renata Bastos da Silva (renatabastos@ippur.ufrj.br) Professora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (2012). Pós-doutorado pelo Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (2015). Autora do livro Lord Keynes pelo Amauta Mariátegui: A crítica da Economia de Keynes na Política de Mariátegui. Jundiaí (SP): PACO Editorial, 2019.

Ricardo José de Azevedo Marinho (ricardo.marinho@cedae.com.br) Professor do Instituto Instituto Devecchi e a Unyleya Educacional. Doutor em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (2011). Pós-Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2014).

Recibido: 13 de setiembre de 2020

Aprobado: 20 de setiembre de 2020


Rev. Filosofía Univ. Costa Rica, LX (156), Enero-Abril 2021 / ISSN: 0034-8252 / EISSN: 2215-5589