Daniel Nery da Cruz y Andressa Dias Filadelfo

Direito à liberdade de expressão:

crítica ao PL 504/20 do Estado de São Paulo

sob a ótica filosófica de John Stuart Mill

Resumo: A presente pesquisa objetiva esclarecer a teoria sobre a liberdade de John Stuart Mill, filósofo britânico utilitarista, tendo como fio condutor a obra On Lyberty datada de 1859. Primeiramente versaremos sobre a compreensão do direito à liberdade, em especial a liberdade de expressão e os obstáculos que perpassa, visto ser um direito que normalmente entra em conflito com outros direitos fundamentais. Ademais, esclarecer a relevância da livre expressão de ideias e opiniões para a evolução da sociedade. Dentre os impasses sofridos, este trabalho irá enfatizar o Projeto de Lei n° 504/20 do Estado de São Paulo e como esta sugestão de emenda fere os direitos fundamentais do indivíduo, em particular o direito a liberdade de expressão e as garantias constitucionais da comunidade LGBTQIA+.
O trabalho foi realizado, utilizando-se o método dedutivo e a pesquisa bibliográfica.

Palavras-chave: censura, direitos fundamentais, liberdade de expressão, PL n° 504/20

Abstract: This research aims to clarify the theory of freedom of John Stuart Mill, British utilitarian philosopher, having as a guiding thread the work On Lyberty dated 1859. First, we will deal with the understanding of the right to freedom, in particular freedom of expression and obstacles that pervades, as it is a right that normally conflicts with other fundamental rights. Furthermore, clarify the relevance of the free expression of ideas and opinions for the evolution of society. Among the impasses suffered, this work will emphasize the Law Project No. 504/20 of the State of São Paulo and how this suggestion of amendment violates the fundamental rights of the individual, in particular the right to freedom of expression and the constitutional guarantees of the community LGBTQIA+. The work was carried out using the deductive method and bibliographical research.

Keywords: censorship, fundamental rights, freedom of expression, PL No. 504/20

Introdução

A interdisciplinaridade é ferramenta utilizada para aprofundar os estudos em diversas áreas do conhecimento, em especial na Filosofia do Direito. A utilização de casos relevantes do presente acentua a magnitude da pesquisa e acabam fortalecendo os movimentos que necessitam da sua publicidade para enfrentarem os obstáculos que vierem a ter.

No caso, o projeto de Lei n° 504 de 2020 do Estado de São Paulo e a obra On Liberty de John Stuart Mill serão utilizados como norteadores de conhecimento acerca da temática da Liberdade de Expressão.

Procurar-se-á compreender o direito fundamental à liberdade de expressão trazida pela Constituição Federal de 1988 e seu percurso no decorrer do tempo. Consequentemente a sua compreensão como direito subjetivo e objetivo para que se entenda a ligação feita pela grande maioria dos estudiosos de que a liberdade de expressão tem a sua gênese no constitucionalismo e no movimento trazido pelo Estado Liberal.

Entender que a própria Carta Magna assevera a liberdade de expressão como direito fundamental dos indivíduos proporciona a sensação de segurança jurídica, entretanto, dentre tantos outros, mas levando em consideração o abordado na pesquisa, com a propositura do PL 504/20 do Estado de São Paulo surge um antigo empecilho conhecido à liberdade de expressão: a censura.

Além dos transtornos na esfera do direito a liberdade, ainda é salientado o caráter discriminatório do projeto de lei que acaba suprimindo as garantias constitucionais da comunidade LGBTQIA+ através da censura daquilo que constar seus conteúdos.

I. Direito fundamental

à liberdade de expressão

A procura por legalização e proteção da liberdade de expressão faz remeter à cultura grega. Em Atenas, um dos direitos mais vangloriados pelos cidadãos era a oportunidade reconhecida a todos de igualmente usar a palavra nas assembleias públicas. Segundo Konder (2001):

Os atenienses orgulhavam-se dessa ampla liberdade de expressão e comunicação que lhes era garantida pela politéia, como ilustra o seguinte trecho de discurso pronunciado por Péricles : “Nós (atenienses) somos os únicos, de fato, a considerar que um homem que se desinteressa da coisa pública não é um cidadão tranqüilo, mas antes um cidadão inútil; pois a palavra não é, para nós, um obstáculo à ação; ao contrário, consideramos perigoso passar à ação antes de nos termos suficientemente esclarecido pelo debate. (pp. 156-157)

Entretanto, segundo Pontes de Miranda (1963) o uso da expressão liberdade de expressão como forma de direito fundamental é de um período historicamente recente. A sua identificação como direito subjetivo fez parte do movimento trazido pelo Estado Liberal. Contudo, a liberdade de expressão constitui um período das gênesis do constitucionalismo e do Estado Liberal (Pinto, 1998).

A Constituição Democrática de Direito do Brasil abarca em seu capítulo II os direitos e as garantias fundamentais, incluindo a liberdade e suas espécies. A categoria dos Direitos Fundamentais diz respeito aos direitos subjetivos básicos destinados aos cidadãos e protegidos pela Constituição.

Os direitos fundamentais possuem caráter dual: além do cumprimento do papel subjetivo de proteção, possuem uma função objetiva, constituindo assim um valor. Portanto, algumas conseqüências de tal caráter objetivo dos direitos fundamentais podem ser assim resumidas:

(i) Os direitos fundamentais não devem mais ser entendidos unicamente sob a ótica individual, pois figuram como um sistema de valores objetivos perseguidos pela sociedade democrática.

(ii) Os direitos fundamentais exigem também a solidariedade e a responsabilidade dos cidadãos na medida em que as formas legítimas de exercício dos direitos fundamentais não se encontram exclusivamente ao arbítrio de seus titulares, pois dependem de sua compatibilidade social. Por conseguinte, se ao Estado cumpre o dever de respeitar os direitos fundamentais, cumpre-lhe igualmente a obrigação de restringi-los, quando necessário, para a salvaguarda de bens coletivos constitucionalmente garantidos.

(iii) As garantias institucionais constituem uma conseqüência autônoma da função jurídico-objetiva dos direitos fundamentais. Elas são consideradas uma importante projeção objetiva das normas constitucionais que não configuram quaisquer posições jurídicas subjetivas fundamentais. Os traços gerais dessa categoria jurídica serão vistos a seguir (1).

(iv) Cumpre ao Estado e à sociedade o dever de promover as condições necessárias para que os direitos fundamentais sejam reais e efetivos para todos (cf. Kommers e Miller, 2012, p. 361).

A liberdade de expressão integra o International Human Rights Law, incluída na International Bill of Rights, composta pelos documentos: Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, aprovada pela ONU (art. 19); Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, aprovada em Bogotá em 1948 (art. 4°); Convênio Europeu para a proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais de 1950, aprovado em Roma (art. 10); Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, adotado em 1966 (art. 19); Convenção Americana sobre Direito Humanos - Pacto de San José da Costa Rica, adotado em 1969 (art. 13).

Pode-se, pois, empregar a frase liberdade de expressão para abarcar as expressões de pensamento, de opinião, de consciência, de ideia, de crença ou de juízo de valor. Além disso, essa expressão consegue captar com maior eficiência a evolução jurídica da comunicação entre os indivíduos.

A liberdade de expressão, por ter conteúdo subjetivo e abstrato, não está submetida ao limite interno da verdade. Conforme assinala Dworkin (2005):

as pessoas moralmente responsáveis fazem questão de tomar suas próprias decisões acerca do que é bom ou mal na vida e na política e do que é verdadeiro ou falso na justiça ou na fé. O Estado ofende seus cidadãos e nega a responsabilidade moral deles quando decreta que eles não têm qualidade moral suficiente para ouvir opiniões que possam persuadi-los de convicções perigosas ou desagradáveis. Só conservamos nossa dignidade individual quando insistimos em que ninguém – nem o governante nem a maioria dos cidadãos – tem o direito de nos impedir de ouvir uma opinião por medo de que não estejamos aptos a ouvi-la e ponderá-la. Para muita gente, a responsabilidade moral tem um outro aspecto, um aspecto mais ativo: seria a responsabilidade não só de constituir convicções próprias, mas também de expressá-las para os outros, sendo essa expressão movida pelo respeito para com as outras pessoas e pelo desejo ardente de que a verdade seja conhecida, a justiça seja feita e o bem triunfe. (p. 320)

Logo, aquilo que deve vir a público não necessita ser verdadeiro, o objetivo é ouvir o máximo de informações possíveis, independentemente de responsabilidade com a verdade.
A sociedade irá se preparar desta forma para ter opiniões próprias e ponderar o que lhe convém. Ademais, a verdade varia conforme os questionamentos acerca de determinado assunto ao longo do tempo, então, não é fato limitador para a liberdade.

A defesa da liberdade de expressão como mecanismo que promove o avanço do conhecimento e obtenção da verdade está embasado na ideia de que numa esfera de debate livre entre indivíduos com pontos de vista divergentes, os melhores argumentos irão prevalecer, acarretando assim na busca pela verdade.

De acordo com Robert Alexy (1999) em sua teoria sobre os Direitos Fundamentais, esclarece que não existem tão somente certos tipos de liberdades, mas sim, um direito geral à liberdade. Assim sendo, todos os indivíduos possuem, prima facie, o direito a agir ou não agir conforme a sua vontade, caso não haja alguma restrição.

Dentre tais liberdades será relevante aqui a do artigo 5°, IV, que garante a liberdade de expressão aos brasileiros e estrangeiros residentes no país. Ao longo do tempo o direito a liberdade de expressão figurou como núcleo da democracia, legitimando os governos democráticos. Sendo assim, a liberdade de expressão serve, portanto, como ferramenta de concretização dos demais direitos fundamentais, figurando como meio de efetivação da democracia.

Vale salientar que o Brasil está imerso nos princípios da dignidade humana e no pluralismo político, tendo como objetivo primordial a construção de uma sociedade livre. É assegurado, constitucionalmente, a todos, o direito de se manifestar livremente.

A Liberdade de Expressão traz consigo um direito fundamental de dimensões subjetivas, assegurando a autorrealização da dignidade da pessoa humana, além de um direito institucional o qual garante a formação de opiniões públicas, pluralismo político e a efetividade do regime democrático. Ademais, permite a livre circulação de pensamentos e opiniões de forma oral e escrita, por imagens ou qualquer outro meio de difusão.

Segundo Alexander Meiklejohn (apud García & Gardó, 2001, p. 113) a liberdade de expressão cumpre duas primordiais funções na democracia: a missão informativa, aqui é onde concentra a ceara da livre circulação das informações favorecendo o melhor conhecimento e a melhor avaliação dos assuntos relevantes da esfera pública, uma vez que compete à população efetivar as decisões fundamentais no regime democrático; além disso, a função crítica por onde a liberdade de expressão resguarda o direito aos cidadãos para criticar o poder político levando até mesmo a mudanças dos governantes por força do povo. Assim sendo, resguarda de forma veemente a promoção da garantia popular, pois a comunicação que ocorre de maneira livre enriquece e amplia o debate público.

Contudo, os Estados Democráticos Contemporâneos encaram um preocupante impasse: garantir a maior ampla circulação de pensamentos, opiniões, ideias e fatos e proteger os cidadãos de eventuais abusos sofridos no exercício da liberdade de expressão. De acordo com Farias (2001, p.13):

Uma explicação para esse fenômeno é que, conquanto a liberdade de expressão e comunicação continue a desfrutar do high-value proclamado pelo liberalismo clássico, as mudanças sociais - mormente o extraordinário poder auferido pelos meios de comunicação de massa, transformados em novas formas de controle suciai - influenciaram a maneira hodierna 9 de tratar o assunto: contemplar a dialética entre a proteção da comunicação livre e aberta e a restrição a ela.

O Direito funciona como o ordenamento jurídico que da ordem e equilíbrio entre as liberdades, observando sempre a tutela à liberdade de expressão dos indivíduos a fim de evitar violações dos seus direitos fundamentais.
A constituição assegura imunidade à liberdade de expressão contra censura de toda natureza, mas com restrições expressas e tácitas.

II. A liberdade na filosofia

de Stuart Mill

Durante sua infância, John Stuart Mill, foi educado segundo um espírito crítico liberal. Desde novo já tinha plena consciência da importância da liberdade para conseguir que a humanidade seja feliz. Seu pai, James Mill (1773-1836), amigo intimo de Jeremy Bentham e, ainda, um apoiador convicto da extensão da educação para as faixas etárias com menor avanço e um dos mais promissores defensores da liberdade de imprensa.

Stuart Mill teve uma educação compatível com a carreira de pensador subversivo e radical. Para James Mill o propósito era evidente, preparava o seu filho para ser um advogado do utilitarismo, corrente esta que ele e seu amigo Bentham já haviam iniciado. Em 1826, a sociedade utilitarista é dissolvida e surge uma sociedade de discussão.

No período do século XIX Stuart Mill irá surgir afirmando que a liberdade de pensamento e discussão é imprescindível para atingir a verdade. Segundo Mill (2019), o método racional para alcançar-se a verdade é a livre discussão e o contraste das opiniões, e em nenhuma hipótese justifica-se a supressão de uma ideia, pois mesmo as opiniões que, no decorrer do debate, revelam-se errôneas são importantes porque ajudam a esclarecer a verdade.

Segundo Mauro Cardoso Simões (2008):

Em 1859 Mill publicará A Liberdade, “um texto filosófico em que é exposta uma única verdade... a importância que representa, para o homem e a sociedade, a existência de uma grande variedade de tipos de caráter e a plena liberdade para que a natureza humana possa se expandir em direções inumeráveis e opostas”, no qual delineara sua doutrina da liberdade em resposta aos “projetos libertários dos reformadores de seu tempo, Comte em particular”. Segundo Mill, o princípio da liberdade é um princípio muito simples e “absoluto”. Para ele, o nome de A Liberdade é o melhor de todos os seus ensaios. Ele ponderado e cuidadosamente composto. Para muitos críticos, no entanto, é um texto repleto de incoerências – não causar danos a terceiros seria uma regra ambígua, frágil e contraditória. O conceito de individualidade seria francamente antiutilitarista, conforme defendem Robert Paul Wolff e Jhon Plamenatz. Para outros, o liberalismo de A Liberdade é, ao contrário, uma impostura: uma apologia mascarada à tirania e à vontade do mais forte. A quem alegue que A Lliberdade revela um “outro Mill”, extravagante, totalmente diferente do Mill de outras obras, moderado e mais prudente. (p. 6)

A obra que está sendo utilizada como fio condutor desta pesquisa é justamente a que foi escrita pelo Mill extravagante que causou estranheza: On Liberty. Nesta obra, Mill irá tratar a liberdade em um sentido moderno de acordo com Antonio Ozaí da Silva (2009), Mill observa que historicamente a liberdade sempre confrontou a autoridade, porém, originariamente se tratava da liberdade dos súditos e de certos limites à tirania dos governos. Logo, a liberdade como obra e como expressão significou o reconhecimento de direitos políticos, imunidades que limitavam a ação do governante e que havendo qualquer fato que fosse contrário a isso poderia existir e se justificar a resistência à rebelião.

Percebe-se, que a liberdade tratada por Stuart Mill não deve ser considerada uma liberdade absoluta, ou seja, o agir ao bel prazer. Para se viver em sociedade tem que haver um mínimo de controle social. O individuo acaba sendo limitado socialmente, pois a sua liberdade tem no outro o seu limite.

A liberdade da qual John Stuart Mill (2020) resolve tratar é a do indivíduo em uma sociedade, assim sendo, a liberdade civil. Em suas palavras:

A sociedade pode executar e executa os próprios mandatos; e, se ela expede mandatos errôneos ao invés de certos, ou mandatos relativos a coisas nas quais não deve intrometer-se, pratica uma tirania social mais terrível que muitas outras formas de opressão política, desde que, embora não apoiada ordinariamente nas mesmas penalidades extremas que estas últimas, deixa, entretanto, menos meios de fuga que elas, penetrando muito mais profundamente nas particularidades da vida e escravizando a própria alma. A proteção, portanto, contra a tirania do magistrado não basta. Importa ainda o amparo contra a tirania da opinião e do sentimento dominantes: contra a tendência da sociedade para impor, por outros meios além das penalidades civis, as próprias idéias e práticas como regras de conduta, àquelas que delas divergem, para refrear e, se possível, prevenir a formação de qualquer individualidade em desarmonia com os seus rumos, e compelir todos os caracteres a se plasmarem sobre o modelo dela própria. Há um limite à legítima interferência da opinião coletiva com a independência individual. E achar esse limite, e mantê-lo contra as usurpações, é indispensável tanto a uma boa condição dos negócios humanos como à proteção contra o despotismo político. (pp. 48-49)

Logo, é de suma importância proteger a liberdade individual, principalmente a liberdade de pensamento e de expressão. Na obra A Liberdade (Mill, 2019, p. 56,) é dito que há uma esfera que abrange, primeiro, o domínio da consciência, pleiteando liberdade de consciência na mais alta compreensão, liberdade de sentir e de pensar, liberdade absoluta de opinião e de sentimento sobre variados assuntos. A liberdade de exprimir e tornar públicas as opiniões podem até parecer que recai sob um princípio diferente, mas uma vez que pertence a parte da conduta individual que concerne às outras pessoas. Em um segundo lugar, o princípio requer a liberdade de dispor o plano de nossa vida para construirmos nosso próprio caráter. Em terceiro lugar, dessa liberdade de cada indivíduo percebe-se a liberdade, no interior dos mesmos limites, de associação entre os indivíduos.

A sociedade só poderá ser considerada livre, independentemente da forma de governo, se essas liberdades forem respeitadas. Além do mais, nenhuma sociedade será considerada livre se essas liberdades não forem absolutas e sem reservas.

A liberdade do indivíduo deve ser assegurada do despotismo político e social e da tirania da maioria. Assim sendo, governo e comunidade não podem impedir ao indivíduo o gozo da sua liberdade. Mill observa que os indivíduos, desde a antiguidade, não mediram esforços para abarcar o indivíduo, chegando até mesmo a anular
as possibilidades da individualidade. As sociedades modernas acabam por favorecer o individualismo, mas não estão livres dele.

A liberdade de pensamento está indissoluvelmente atrelada à liberdade de se exprimir. Segundo Lafer:

É interessante, neste sentido, apontar que a liberdade de pensamento e de discussão tem tanto a dimensão da liberdade moderna – a de não ser molestado pelo Estado e pelos Outros por conta das próprias opiniões – quanto a dimensão da liberdade antiga – a de poder expressar, publicamente, idéias e pontos de vista que dizem respeito à vida individual e coletiva. (apud Mill, 2019, p. 20)

Nota-se que para Mill a liberdade deverá ser ilimitada. Ele concebe a liberdade de discussão e pensamento como condição primordial para a necessária evolução do intelecto e do progresso humano. Logo, a supressão da liberdade deve ser entendida como um mal ao progresso da sociedade. Na análise de Stuart Mill:

Primeiramente, a opinião que se tenta suprimir por meio da autoridade talvez seja verdadeira. Os que desejam suprimi-la negam, sem dúvida, a sua verdade, mas eles não são infalíveis. Nada têm autoridade para decidir a questão por toda a humanidade, nem para excluir os outros das instâncias do julgamento. Negar ouvido a uma opinião porque se esteja certo de que é falsa, é presumir que a própria certeza seja o mesmo que certeza absoluta. Impor silêncio a uma discussão é sempre arrogar-se infalibilidade. (Mill, 2020, p. 61)

A importância da liberdade, então, alcança em J. Stuart Mill lugares ainda maiores do conhecimento, suas nuances objetivas e subjetivas abrem espaço para o poder que a liberdade de expressão, especialmente, detém à evolução do saber humano. Suprimi-la é, logo, negar às gerações futuras a capacidade de evoluírem plenamente, de maneira livre, sujeitos aos mais diferentes debates.

III. Considerações acerca

do PL 504/20 do Estado de SP

O projeto de Lei nº 504/2020 tem como ementa a proibição da publicidade, através de qualquer veículo de comunicação e mídia de material que contenha alusão a preferencias sexuais e movimentos sobre diversidade sexual relacionados a crianças no Estado de São Paulo. Foi publicada em 05 de agosto de 2020, em regime de tramitação de urgência e proposta pela deputada Marta Costa.

Os apoiadores consideram que o uso indiscriminado do referido material de divulgação pelos veículos de comunicação e mídia, trariam um real desconforto emocional às famílias, além de estabelecer prática não adequada às crianças e adolescentes. Ademais, consideram ser objetivo primordial a proteção da infância e adolescência.

Sob o aspecto de sua legalidade e constitucionalidade, a proposta obedece às disposições constitucionais, previstas nos artigos 19, caput, 21, inciso III e 24, caput, todos da Constituição Estadual, por competir à Assembleia Legislativa, com a sanção do Governador, dispor sobre todas as matérias de competência do Estado, por meio de processo legislativo que compreende a elaboração de lei ordinária cuja iniciativa cabe a qualquer membro ou comissão desta Casa Parlamentar.

Entretanto, no que tange ao aspecto de mérito, no mínimo a matéria merece reparos e aprimoramentos como forma de evitar violação a direitos fundamentais e de gerar dúvidas sobre seu alcance e seu intuito.

Importante salientar que a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227, elenca os direitos fundamentais especiais de crianças e adolescentes:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Uma dimensão importante desses direitos diz respeito à necessidade de proteger as crianças e adolescentes de situações que abalem seu desenvolvimento, bem como assegurar que tenham acesso, de forma segura, a informações, cultura e lazer. Ora, diante disso vale a propositura das seguintes querelas: o Projeto de Lei 504/2020, de acordo com sua ementa, abala os direitos fundamentais especiais das crianças e adolescentes? Ademais, surge outra emblemática: o projeto supracitado viola os direitos e a diversidade expressa pela população LGBTQIA+?

Sendo assim, o projeto fere princípios básicos de cidadania e luta contra discriminação em decorrência de gênero ou orientação sexual, bem como é indicado pela Lei 10.948/2001, em especial o artigo 2:

Art 2: Consideram-se atos atentatórios e discriminatórios dos direitos individuais e coletivos dos cidadãos homossexuais, bissexuais ou transgêneros, para os efeitos desta lei:

I - praticar qualquer tipo de ação violenta, constrangedora, intimidatória ou vexatória, de ordem moral, ética, filosófica ou psicológica;

II - proibir o ingresso ou permanência em qualquer ambiente ou estabelecimento público ou privado, aberto ao público;

III - praticar atendimento selecionado que não esteja devidamente determinado em lei;

IV - preterir, sobretaxar ou impedir a hospedagem em hotéis, motéis, pensões ou similares;

V - preterir, sobretaxar ou impedir a locação, compra, aquisição, arrendamento ou empréstimo de bens móveis ou imóveis de qualquer finalidade; VI - praticar o empregador, ou seu preposto, atos de demissão direta ou indireta, em função da orientação sexual do empregado;

VII - inibir ou proibir a admissão ou o acesso profissional em qualquer estabelecimento público ou privado em função da orientação sexual do profissional;

VIII - proibir a livre expressão e manifestação de afetividade, sendo estas expressões e manifestações permitidas aos demais cidadãos.

Diante o exposto, questiona-se se houve censura indevida e discriminatória, pois associam as pessoas LGBTQIA+ a características danosas e possuidoras de influência inadequadas. Ainda, fere o direito a liberdade de expressão a partir do momento em que impede a publicidade de determinado assunto.

Para Mill (2019, p. 14) existem três possibilidades para o argumento: uma opinião pode ser totalmente verídica, parcialmente verídica ou totalmente falsa. Segundo ele, se é totalmente verdadeira ou parcialmente verdadeira proibi-la será um mal, porque impede as pessoas de terem acesso a novas posições. Se for totalmente falsa ainda assim o autor afirma ser útil às pessoas, pois perceber as posições mais diversas é essencial para melhorar a nossa própria posição.

No decorrer do texto acima mencionado o autor reconhece que há um tipo de caso em que se pode restringir legitimamente a liberdade de expressão: quando ela constituir uma incitação ilegítima à violência.

Sendo assim, é legítimo censurar uma publicidade que apresente conteúdo ligado a preferências sexuais e movimentos sobre diversidade sexual se levar em conta as considerações feitas por John Stuart Mill a respeito da liberdade de expressão?

Não são os espíritos heréticos que mais se corrompem pela ação do anátema lançado a toda investigação que não finde por conclusões ortodoxas. O maior dano, sofrem-no os que não são heréticos, aos quais se embaraça todo o desenvolvimento mental, e cuja razão se acovarda de medo da heresia. Quem pode calcular o que se perde com a multidão de inteligências, a coexistirem com caracteres tímidos, que não se aventuram a incorporar-se em nenhuma corrente arrojada, vigorosa e independente, de opinião, com o temor de que ela os leve a alguma coisa que possa ser tachada de irreligiosa ou imoral. (Farias, 2001, p. 76)

Estaríamos negando o direito às gerações futuras de possuírem o máximo de informações possíveis para a formação intelectual e social. Além do mais, o projeto de lei mencionado fere as garantias constitucionais da comunidade LGBTQIA+.

Considerações finais

Diante o exposto, percebe-se claramente que os Estados tidos como Democráticos, apesar de terem em sua gênese o direito fundamental ao indivíduo, burlam através dos seus mecanismos legais, de forma até mesmo discriminatória, o direito fundamental à expressão sob um discurso moralista social.

John Stuart Mill, em sua obra utilizada como fio condutor para a pesquisa, On Liberty, assevera a importância e a magnitude da liberdade de expressão, o que faz refletir a respeito da censura proposta pelo PL 504/2020 do Estado de São Paulo.

A censura questionada perpassa caminhos sombrios não só no âmbito das liberdades, seus aspectos negativos permeiam as esferas do preconceito e discriminação para com os indivíduos que fazem parte da comunidade LGBTQIA+. Não configura incitação à violência, tampouco qualquer ideal que ameace o bom andamento social. Apesar de que, segundo Mill, todo pensamento deve ser discutido, independente da sua veracidade ou não, haverá ganho intelectual para ambos os casos.

Como trazido pela pesquisa, o direito à liberdade de expressão tem também como objetivo o fortalecimento da democracia. A censura irá surgir como mecanismo que afeta diretamente esta liberdade e muita das vezes poderá surgir com nuances discriminatórias.

Compreender a importância da livre circulação de ideias e pensamentos, através da publicidade e comunicação é o essencial para assimilar o porquê a liberdade de expressão perpassa os direitos fundamentais e serve até mesmo como mecanismo de aprimoramento intelectual dos indivíduos.

Notas

1. Nesses três primeiros itens seguem-se aproximadamente os argumentos de Vieira de Andrade (2017, pp. 146-166).

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Daniel Nery da Cruz (danielncruz@
hotmail.com
) Doctor en Filosofía por la Universidad del Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Profesor de la Universidad Estatal de Feira de Santana
– UEFS. Profesor de la Facultad Católica de Feira de Santana. Investigador del Núcleo Avançado de Estudos da Contemporaneidade – UESB. Integrante del grupo de investigación ética, biopolítica y alteridad CNPQ.

Andressa Dias Filadelfo (andressafiladelfo36@gmail.com) Estudiante de Maestría en Derecho en el Programa de Postgrado Stricto Sensu del Centro Universitário Guanambi. Especialista en Derecho Penal por Uniasselvi. Graduada en Derecho por la Faculdade Independente do Nordeste – Fainor. Miembro del Grupo de Investigación Andira y Caju del Centro Universitário Guanambi, además de ser miembro del grupo de investigación en Derechos Humanos –Gesidh – del Estado de Manaus. Becaria CAPES.

Recibido: 12 de setiembre, 2021

Aprobado: 15 de enero, 2022


Rev. Filosofía Univ. Costa Rica, LXI (160), Mayo-Agosto 2022 / ISSN: 0034-8252 / EISSN: 2215-5589