Reseñas
Otredad y Mestizaje. El barroco en la Modernidad de México y Brasil, de Maria de Nazaré da Rocha Penna
Otredad y Mestizaje. El barroco en la Modernidad de México y Brasil, de Maria de Nazaré da Rocha Penna
Cuadernos Inter.c.a.mbio sobre Centroamérica y el Caribe, vol. 17, núm. 2, 2020
Universidad de Costa Rica
da Rocha Penna Maria de Nazaré. Otredad y Mestizaje. El barroco en la Modernidad de México y Brasil. 2018. Beau Bassin. Editorial Académica Española. 483pp.. 978-620-2-15954-8 |
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Otredad y Mestizaje, el barroco en la Modernidad de México y Brasil (2018) é um livro ilustrado sobre o Barroco como motivo estético da mestiçagem cultural e das representações da mulher, no contexto histórico de invasão e colonização ibérica do “Novo Mundo”. Detendo-se nos casos mexicano e brasileiro, a obra analisa o ethos barroco, cujos valores e comportamentos comuns ilustram as imagens da colonização nesses países, mantidas de certa forma até os dias atuais. Por meio dessa estética barroca, se desvelam as características mais notáveis da formação de ambas as sociedades, pelo que se torna bastante relevante o estudo da obra em comento. No reconhecimento de diversas marcas da história da arte barroca, contrastam-se as margens mestiças e femininas, as quais balizam as representações da colonialidade, da mestiçagem, da alteridade e da subalternidade como contingências da desigualdade e do atraso latino-americanos. As imagens que abrem e encerram o livro refundem-se em emblemáticas ilustrações, na busca retorcida dos processos de mestiçagem cultural: entre os mitos e as narrativas de formação das identidades latino-americanas. A primeira dessas imagens, da Companhia de Jesus, com os seus santos acima do mundo, dominando os continentes, e a última com uma bela retratação de mulher branca, tal idílica e (in)apropriada representação de Iemanjá, a rainha das águas do mar: deusa de origem Iorubá. A autora pretende, com a composição dessas imagens, fazer notar um sínodo reverso (e perverso!) da remição icônica e sacra de autorização da violência colonial sobre essas sociedades.
Todo o teor da obra da professora, filósofa, artista plástica e intelectual Maria de Nazaré da Rocha Penna apresenta-se, para tanto, dividido en três partes, além da introdução, da conclusão e da bibliografia. A primeira, “La Civilización Ibérica y lo Barroco”, contém dois capítulos. O primeiro deles com as seguintes seções: “El concepto de ethos y los ethe modernos”; “La Península y la formación del ethos barroco”; “La Península metafísica” e “Los Íberos”. O segundo apresentando: “El espacio y el tiempo en el arte, del Gótico al Barroco”; “El estilo barroco en la Civilización Ibérica”; “El Barroco italiano, según Panofski”; “Una mirada a contrapelo” e “El mestizaje”. Já a segunda parte da obra, intitulada “Lo viejo en el nuevo mundo”, contém cinco capítulos. O primeiro contém: “Introducción”; “Los Franciscanos”; “Los Franciscanos en la Nueva España: la visión del mundo del predicador”; “El espacio sincrético”; “La resignificación del territorio con los mitos cristianos” e “El fin de la utopía franciscana”. O segundo tem as seguintes divisões: “Los jesuitas”; “La influencia ignaciana en el Barroco”; “La ciencia psicológica de la Compañía”; “El énfasis en la educación y en la confesión”; “Los jesuitas en América”; “Ideología y arquitectura” e, por fim, “Arte y arquitectura jesuita en Latinoamérica: aspectos generales”. O terceiro subdivide-se nestas partes: “Los jesuitas en Brasil”; “El arte y la arquitectura jesuita en Brasil”; “Una frontera en movimiento e Padre Antonio Vieira”. No Capítulo IV são destacados: “Los jesuitas en la Nueva España”; “El esplendor del arte jesuita en la Nueva España” e “Descripción de la iconografía e iconología de San Francisco Javier, según C. Maquívar”. Por último, o Capítulo V intitula-se “Los Franciscanos y sus iglesias en la Bahía barroca”; donde se comenta o que, segundo a autora, é denominado de “La Orden Tercera”. A terceira parte está dedicada às epifanias da Virgem Maria no México e no Brasil, “Las epifanías de María en México y Brasil”, subdividida em dois capítulos. No primeiro, “Mestizaje y espiritualidad novohispanas: las disonancias entre lo público y lo privado”, aborda-se a presença feminina na espiritualidade hispânica, notadamente no que concerne ao mito guadalupano. No segundo, “Las Marías de Brasil”, enfatizam-se as representações femininas da espiritualidade africana e afro-brasileira.
Como dissemos, já na primeira página da Introdução destaca-se uma litografia do século XVIII, com a representação do ideário da Companhia de Jesus: “Unus non sufficit Orbis” (um mundo só não basta) ou “A world is not enough”, também título de um dos filmes da série de James Bond, o décimo nono da franquia 007 (1999). O estilo iconográfico triunfalista e apoteótico desta litografia, segundo as palavras do estudioso do Barroco Afonso Ávila (1994), apresenta os santos máximos da Ordem Jesuítica, Santo Inácio de Loyola, São Estalisnau Kostka e São Luís Gonzaga, dominando todos os continentes (representados por figuras femininas!). Trata-se, talvez, de mais um oximoro, tão característico do dualismo estético barroco, do chiaroscuro de sua dominação mal definida, da mestiçagem confundida entre colonialidade e patriarcado. Afinal de contas, conforme a própria autora indaga na página seguinte: o que teriam em comum uma ordem religiosa, da dimensão da Companhia de Jesus, personificada em Santo Inácio de Loyola, na imagem mais cabal do “homem mundano” e impondo-se airosamente sobre as mulheres a seus pés, e a apropriação cinematográfica contemporânea de James Bond? (Penna, 2018, p. 10). Os três séculos que separam a litografia da produção fílmica, em suas expressões hierárquicas principais, correspondem a opções culturais definitivas para a moldagem do sistema-mundo-moderno. Trata-se da evidência de que os motivos dos dualismos estruturantes estavam assentes desde lá, do Barroco: tal como escultura representando o movimento detido numa fração do tempo, como um inseto encapsulado no âmbar, tendo sido a negativa do cinema a sua libertação indene, a sua projeção dinâmica e atualíssima.
Na busca por evidenciação disso, foi que a autora dividiu a sua obra em três partes. Na primeira seção “El concepto de ethos y los ethe modernos”, ela nos traz as fundamentações teóricas que possibilitaram a sua pesquisa. O alicerce lançou-se, acertadamente, na teorização dos “ethe modernos” latino-americanos, do filósofo equatoriano Bolívar Echeverría, em suas considerações em La modernidad del barroco (2000). O professor de Riobamba descreve, a partir da contingência de nossas origens sociais barrocas, o vitupério do que ora se nos são apresentados como “modos de viver”; os quais não são senão formas degradadas ou arremedos de adaptação à modernidade-mundo-capitalista. Em disposição totalizante e superficial, como quem apenas sobrevive, pode-se apresentar o modo realista de vida (ou ethos realista) desempenhando o papel predominante. Trata-se de um ethos que naturaliza a ordem neoliberal, organizando, de maneira opressiva, a sua combinação com outros modos marginalizados de vida. Associado a este, há um ethos romântico, dos que idealizam o capitalismo como uma aventura de possibilidades, de empresas pessoais e arrojos em feéricas liberdades e desafios; sustentado, por sua vez, por um ethos clássico, em consonância com os que acreditam, ao modo do idealismo hegeliano, que as coisas deste mundo são como são... como perseguição de identidades de/sobre si mesmas, e conferidas pela sobredeterminação do Espírito do Tempo... sendo a história da humanidade o alcance de um itinerário finalista e inexorável. Finalmente, ter-se-ia um ethos barroco: que corresponderia, em síntese, às formas de vida a se adotar por nossos mestiços povos da América Latina. Endossando características sincréticas muito particulares, e que conservam inóculos do contagiante imaginário da criação e expansão de um “Novo Mundo”, a expressão latino-americana do Barroco faz-se tardia e periférica, posto que com ares de grandiosidade, idealizando a sobrevivência na ordem imposta pelo sistema-mundo-moderno. De acordo com a autora (2018, p. 20), o mesmo Echeverría (2000) demonstra que as nossas sociedades edificaram-se nas diferenças culturais arquetípicas, hierárquicas e dualistas desse Barroco, formadas em épocas coloniais distintas, posto que ocupando simultaneamente o mesmo espaço/tempo contemporâneo. O exemplo citado desse complexo hierárquico, de tensões duais e estruturais (apenas aparentemente confuso), é o de uma empregada doméstica e um motorista, protagonistas de uma escola de samba durante o carnaval carioca; mesma situação em que os seus patrões são reduzidos ao chão, como meros passistas e figurantes. Só no carnaval os papéis sociais se invertem, para serem normalizados na quarta-feira de cinzas; ainda que, no imaginário da favela, empregada e motorista mantenham-se na fantasia “como vencedores”, a partir do que “a própria vida lhes fez” (Penna, 2018, p. 21).
Na sequência, “La península y la formación del ethos barroco” e “La Península Metafísica y Los Íberos” são seções dedicadas a analisar as características da, então considerada, “civilização ibérica”: como uma variante cultural do ocidente, cuja história se deu por fatores distintos dos que conduziram as formações culturais e políticas de outros países europeus. Espanha e Portugal se constituíram como culturas de dispersão, de avanço e reinvenção no espaço da colonialidade. Primeiro internamente, com a expulsão dos mouros, e depois mundialmente ante as grandes navegações. Enquanto que, no resto da Europa, os países se estruturaram, em longo prazo, com as suas tradições mantidas (endogenamente) em um mesmo espaço. No que disso se segue, no Capítulo II, as seções configuram-se a interpretar o que corresponderia ao “Zeitgeist” da civilização europeia continental. As análises do espaço/tempo nas obras de arte permitem identificar as mentalidades dos diferentes períodos históricos. Na época “das conquistas”, os estilos do Renascimento italiano, do Maneirismo e do Barroco espraiaram-se tardiamente na Península Ibérica para, só mais de meio século depois, alcançar as suas colônias, assumindo em cada uma delas contornos próprios à sua colonização. A condução dessa parte da obra dedica-se, pois, à análise das bases idealizadas, senão epicamente romantizadas, da mestiçagem ibero-americana: na (res)significação do encontro do que se convencionou como a “civilização da escrita, do cristianismo, da arte e do pensamento racional” com as “primitivas culturas nativas originais”, mantidas até ali emocionalmente presas à natureza, à oralidade poética e ritual, à empiria direta com a vida. No campo dessa síntese dualista e idealizada, envolvendo a sordidez colonialista ibérica, o Barroco promove o circuito de aproximação das sensibilidades em curso, especificamente no apelo exuberante aos sentidos reversos, às experiências hiperbólicas do contato e do encantamento dramático com a alteridade.
Na parte II, foram estudados os papéis das Ordens franciscana e jesuíta na empresa colonial e estética do Barroco latino-americano, suas respectivas contribuições à cultura ocidental (no cenário colonial) e ao processo de “civilização europeia no Novo Mundo”: através de suas catequeses, suas edificações eclesiais, técnicas e artes em geral. Esta parte está dividida em cinco capítulos, relacionados à ordem de chegada desses religiosos. A Introdução da parte II é uma síntese da história da cristandade na América Latina, e a partir de “Los Franciscanos”, e das seções seguintes, confere-se o relato das “inovações” desta Ordem no estabelecimento do cristianismo na Nova Espanha. À disseminação da Ordem Franciscana nas Américas estão dedicadas seis seções, que compreendem a discussão sobre as implicações do cristianismo no “Novo Mundo”: com os franciscanos, desde os primeiros anos da “conquista” (1523-24), até a chegada dos jesuítas, que os sucederam na empresa de cristianização colonial, em 1572. Os franciscanos fizeram-se portadores de uma iconografia e uma mentalidade renascentista, conforme o que se reflete nas gravuras da Rethorica Christiana, de Diego Valadés, e nas tentativas de compulsória conversão dos indígenas (Penna, 2018, p. 142). Impregnados pela teoria milenarista de Francisco di Fiori, esses padres acreditavam que era chegada a “era do Espírito Santo” e que um “novo reino de paz” envolveria a Terra, preparando a volta do Filho do Homem. A trajetória da Ordem dos Franciscanos, protegida pelo poder real espanhol, refunde-se então na empreitada de inculturar a alma indígena, vituperando as relações dos índios entre si e sobre a sua antiga ancestralidade, desnaturando a sua relação com o mundo, com as divindades da natureza e recobrindo, então, o seu vasto território - com os mitos da anunciação cristã.
Nesse ínterim surgiu uma arquitetura monumental, posto que logo esvaziada pela dizimação dos indígenas. As “capillas de indios”, como sincretismo de iniciação cristã, são uma evidenciação da destruição dos povos originários, já que os índios não poderiam conceber, sequer imaginar, “um deus” dentro de um espaço fechado, sendo que o que desses ambientes, de fato, se disseminaram foram as contaminações em massa e todo o revés de maus augúrios e desgraças. A persistência dos conflitos com os colonizadores e a constatação da resistência indígena à conversão, instaram os franciscanos a rever as suas práticas e a procurar conhecer mais profundamente as culturas locais. Foi essa mudança que permitiu a conservação de parte das expressões autóctones, a retenção de seus códices pictóricos, com descrições e registros de ritos e de outros costumes tradicionais, bem como o reconhecimento de lideranças nativas. Ao longo do século XVI, a utopia franciscana foi, contudo, se esvanecendo e conferindo lugar ao novo paradigma da Igreja, contemplado então pelo arrojo jesuítico. O Capítulo II, da Parte II, é dedicado por isso a “Los Jesuitas”, começando pela descrição dos motivos históricos que levaram ao surgimento da Companhia, na Espanha, já sob a liderança de Inácio de Loyola. De acordo com a autora (2018, pp. 179-180), é necessário entender como se deu a ascensão da espiritualidade na Espanha, entre o final do século XV e o começo do XVI. O catolicismo de “simplicidade”, inspirado no humanismo de Erasmo de Rotterdam, ganhava força frente ao catolicismo resignado dos ritos medievais. Martinho Lutero e Santo Inácio foram homens dessa época, na qual também se deu a Contrarreforma. No começo da Companhia de Jesus, segundo Marcel Bataillon (1966), não havia ainda antagonismos radicais entre o humanismo de Erasmo e o apostolado legionário inaciano, entre o pensamento humanista e a disposição secular a uma vida encerrada nas percepções da fé. O Concílio de Trento (1563) foi o divisor de águas, nesse sentido, e a Companhia optou pela obediência ao Papa e pelo abandono da consciência, no momento em que se estabelecia o absolutismo monárquico espanhol.
Mediante a exortação a exercícios legionários espirituais, aquele que é considerado o fundador da Ordem Jesuítica também deu um passo decisivo para uma nova espiritualidade: mais passiva, obediente e individualista. Roland Barthes (1971) chama a Inácio de Loyola de “logothète”, reconhecendo-o como fundador de uma linguagem que recobre o tempo interior individual para, enfim, submetê-lo à disciplina das imagens da percepção sensorial. É essa nova relação espaço/tempo, com base em exercícios espirituais, que convergirá a percepção dos sujeitos ao anúncio da modernidade, induzindo-os à criação barroca. Na seção “La influencia ignaciana en el barroco”, são apresentados argumentos históricos sobre a importância da contribuição dos jesuítas à história das artes visuais. Depois do Concílio de Trento e inspirados pelos exercícios espirituais, os inacianos conceberam uma lógica que, se por um lado asseverava o compromisso com o conhecimento filosófico, sensível à experiência estética, por outro, contribuía para a retórica das imagens sacras: associadas ao pathos e à eloquência do corpo individual. Por isso, nessa seção, a autora apresenta teses sobre a iconofilia das imagens, justificadas por teólogos que lançavam seus argumentos quanto à perspectiva individual e à retórica catequizante dessas imagens. Luís de Molina e Francisco Suárez (entre outros jesuítas) responsabilizaram-se pelo delineamento da individualidade como característica notável do homem moderno: rompendo com a tradição coletiva medieval. No que a isso se acresce, os saberes técnicos tornaram-se mais cotidianos e, nas novas condições em que se apresentou a partir dos séculos XVI e XVII, o absolutismo procurou igualmente afetar as vontades individuais dos sujeitos: incitando-os à comoção, movendo os seus ímpetos, despertando os seus interesses às sensações e emoções.
Na evidenciação disso, “La ciencia psicológica de la Compañía” é a seção do livro que mostra como os jesuítas investiram na psicologia prática para os interesses de sua empresa colonial e catequética: tratava-se de conhecer para (re)modelar as subjetividades. Um exemplo cabal, revelado por Massimi (2001), é o da aplicação dessa ciência na escolha dos padres que viriam para a catequese no Brasil. Os teólogos jesuítas da Universidade de Coimbra adaptaram, àquele momento histórico de atendimento ao absolutismo e à colonização, o seu conhecimento sobre o comportamento humano, mediante duas vertentes: uma especulativa (que se ocupava com a produção filosófica da própria Ordem) e outra prática, de origem aristotélica-tomista, chamada de “Medicina do Ânimo” ou “Medicina da Alma” (a propósito da dinâmica psíquica das ações). A teoria dos temperamentos, aplicada aos candidatos a virem para o Brasil, permitia calcular a quantidade de padres com personalidades desejáveis para o desempenho das funções ali. O ideal para a missão no Brasil pareciam ser o temperamento colérico sanguíneo e o colérico melancólico, pois o humor da cólera predispunha os sujeitos para a ação, o heroísmo e o enfrentamento das situações.
“El énfasis en la educación y en la confesión” é a seção seguinte, referente à atuação dos jesuítas nas Américas, no momento em que a Igreja via esvaziada a crença no milenarismo (fim dos tempos) e em que José de Acosta asseverava, em campanha aberta desde o Peru, a sua inconsistência teológica. Essa mudança paradigmática da modernidade se fez sentir no trabalho religioso: rotundamente sobre a formação do juízo de culpa, como índice de responsabilização individual, e, por conseguinte, da necessidade em torno de sua confissão. Diga-se que o ideal franciscano, ao revés dessa disposição de peso moral sobre o sujeito, baseava-se na força da própria liturgia, na crença de que os antigos já haviam revelado tudo e de que os sacramentos continham já o poder de conversão, livramento, salvação e expansão da obra. O batismo interviria diretamente na alma dos índios, convertendo-os sem necessidade de catequese. Os jesuítas, ao contrário, criam que a tradição não suplanta a experiência dos sentidos. O ideal de cristianização muda, então, de um projeto de evangelização, para o de “civilizar”, tornar os índios “civis”, com senso moral: como súditos-cristãos, pagadores de impostos, declaradores de seus deveres e reconhecimentos.
Nas seções “Ideología y arquitectura” e “Arte y arquitectura jesuita en Latinoamérica: aspectos generales”, a autora registra a preocupação dos jesuítas com as suas edificações. Todos os projetos eram enviados a Roma para comparação com a Igreja de Jesus (Il Gesú), considerada emblemática. Ainda assim, a maleabilidade, tanto do pensamento como da iconografia e da arquitetura, às demandas locais de expansão, prevaleceram sobre quaisquer módulos exemplares. A qualidade e a grandiosidade das construções tornaram muitas dessas igrejas catedrais. Não se mediam esforços pelos melhores artistas e artesãos. Tanto na Europa como nas Américas, o caráter internacional da Companhia se revelou como uma política de caça-talentos, incentivando artistas a se integrarem à Ordem. Em razão disso, encontram-se, tanto no Brasil quanto no México, estilos italianizantes e maneiristas de arquitetura barroca, entre fins do século XVI e começo do XVII. Já no século XVIII, predominou o estilo rococó centro-europeu: introduzido precocemente, no Chile e no Brasil, por padres-artistas advindos da Áustria e da Suíça. Outro traço dessa arquitetura e arte barrocas foi a retratação pictórica de seus representantes, por meio da individualização psicológica, em pinturas e esculturas. Encontram-se restos de coleções que evidenciam isso em Tepotzotlán (México) e na sacristia da igreja de Salvador (Brasil), em cujas esculturas e pinturas reconhecem-se traços e fisionomias dos artistas.
No Capítulo III, da parte II, na seção “Jesuitas en Brasil”, a autora fala das primeiras impressões dos portugueses, registradas por Pero Vaz de Caminha, sobre a Terra “descoberta” de Vera Cruz e seus habitantes, os índios. A preocupação com a conversão ao cristianismo surge desde o início, o que não oculta a ideia dos portugueses, a propósito dos autóctones, como seres inferiores e próximos à animalidade. Afinal, a despeito de afável e nua, aquela era uma gente “sem rei, sem lei e sem Deus” (Penna, 2018, p. 230). Não à toa foi a Ordem Jesuítica, recém-criada na época, a escolhida pelo rei D. João III para representar a Igreja Romana no Brasil, vinda já em 1549, na esquadra do 1.º Governador Geral Tomé de Souza. A nossa autora descreve, então, como reagiram os padres à realidade da “Nova Terra”: as dificuldades enfrentadas na instrumentalização da mão de obra indígena, a empreitada pela criação das “Reduções” nas vilas cristãs (onde os indígenas eram reduzidos ao modo jesuíta de ser e viver). São mencionados o sucesso e a riqueza gerada, usados sempre para a expansão da Companhia, segundo o lema “Ad maiorem Dei gloriam”, AMDG. Na seção seguinte, estão descritas “El arte y la arquitectura jesuita en Brasil”, cujo dinamismo se deu inicialmente em Salvador, com o colégio e a principal igreja da Ordem: um conjunto que se tornou cabeça de série para todos os posteriores. Um mapa de 1625 mostra a importância da localização desse conjunto no centro da cidade. A igreja jesuíta corresponde à 4.ª edificação mais antiga do atual centro histórico e, no livro, a autora apresenta fotos dos seus altares, de diferentes épocas, com características que vão do Maneirismo ao Barroco tardio português (Penna, 2018, p. 258). Alguns dos quadros e painéis, usados nos exercícios espirituais nesta igreja de Salvador, são analisados pelo Dr. Moura Sobral (Universidade de Montreal) (2000), destacando-se a preocupação dos jesuítas com as condições do culto no Brasil. Entre estes quadros, há uma curiosa interpretação do tema “Cristo e a mulher adúltera”: que retrata uma atitude de desdém da mulher pelo perdão oferecido. Também deste autor é uma leitura iconográfica das pinturas do teto da sacristia, extremamente ricas em detalhes, que as considera como um bel-composto barroco, e cujas imagens estariam relacionadas a um poema de José de Anchieta S. J. (a propósito da Virgem e dos santos mártires da Companhia). A planta da igreja, algumas fotos dos altares e outras informações da iconologia encerram esta riquíssima seção descritiva do livro da Professora Rocha Penna (Penna, 2018, pp. 265-268).
As singularidades da colonização do Brasil, a formação de sua cultura religiosa, as dificuldades da catequese e as técnicas jesuíticas desenvolvidas para superá-las, por meio do apelo estético aos sentidos e à monumental produção artística, são descritas pela autora na seção “Una frontera en movimiento”. Destaca-se o caráter internacional da Companhia, que permite encontrar um jesuíta pintor e escultor, de origem austríaca, trabalhando em Belém do Pará, bem como a influência do rococó na decoração de uma igreja no interior do Maranhão. Tenha-se em mente que, no século XVII, a referência ao Padre Antônio Vieira S. J. é obrigatória. Com personalidade e dons inigualáveis, considerado o maior orador da língua portuguesa, ele foi um homem superlativo em seus discursos e inteligência, atuando como defensor incansável da liberdade dos indígenas. Em decorrência disso, é que a autora apresenta ali um de seus famosos “Sermões”, no qual ele concita os fiéis a notarem a própria percepção sensorial, a compreensão dos seus afetos e sentimentos mais íntimos: como meios para o autoconhecimento e a obtenção da liberdade. Para representar a dor, a vergonha, o temor e a esperança são elaboradas, em seu discurso, imagens mentais que devem penetrar a alma dos ouvintes/leitores, e comovê-los profundamente. Segundo a autora, uma representação das “Penas do inferno”, gravada em um dos quadros da igreja “La Profesa de los Jesuitas”, na Cidade do México, dimensiona bem a inflição da dor física como destinação final do pecador: à qual, junto a tantas outras imagens, se refere o Pe. Vieira em quase todos os seus “Sermões” (Penna, 2018, p. 313).
O Capítulo IV, na seção “Los Jesuitas en la Nueva España”, trata da chegada da Companhia de Jesus ao México, em 1572. Desde então, os jesuítas não se omitiram de concorrer com os franciscanos pela tutela dos índios. Pragmáticos, eles se apropriaram dos símbolos e costumes nativos, conforme já faziam no Brasil: buscando aproximar-se do imaginário popular, ao mesmo tempo em que se dedicando à educação das classes mais favorecidas do vice-reino. O fervor religioso e os ganhos materiais fizeram com que a Companhia se expandisse por todo o território da Nova Espanha. A disciplina, a obediência, o cumprimento às regras dominavam a vida monacal, ao mesmo tempo em que os ritos religiosos exteriorizavam-se: com aparatos visuais e sensoriais sempre mais arrebatadores, auferindo à Igreja um prestígio antes jamais alcançado pelos franciscanos. Esses ritos exteriores guardavam, senão no fundo ao menos na forma, a memória das tradições ameríndias, além do apego às celebrações que envolviam a morte. Além disso, o êxito jesuítico no México se traduziu igualmente em maravilhosas obras artísticas e arquitetônicas. Na seção “El esplendor del arte jesuita en la Nueva España”, a autora nos traz a ilustração de exemplos desse Barroco, e ainda a descrição e as imagens de altares que foram construídos de forma inovadora. Para Francisco de la Maza (1973), a tipologia retabular tradicional era, até ali, ascensional: direcionando o olhar do fiel para cima, com a intenção de alçá-lo ao “mais além”. Foi no México que, diferentemente, os altares passaram a ser erigidos em homenagem à vida e à ação de homens (e mulheres) próximos, santificados e humanamente dedicados à sua Ordem religiosa. Trata-se de uma (re)leitura linear (em paralelismo retabular) das vidas destes/as que se fizeram santos/as em suas próprias comunidades. Nessa disposição horizontal, o santo titular do altar fica ombreado por amigos, testemunhas, tutores, companheiros e discípulos, e a sua veneração compõe-se por valores humanos e divinizantes. Por fim, em “Descripción de la iconografía e iconología de San Francisco Javier, según C. Maquívar”, a autora nos brinda com a revelação do rigor teológico e da beleza conceitual envolvidos na criação de um templo jesuíta (Penna, 2018, pp. 319-325).
No Capítulo V, “Los Franciscanos y su iglesia en la Bahía barroca”, é descrito, no exemplo da igreja coberta de ouro, situada na Praça do Pelourinho (onde eram castigados os escravizados), o Barroco do nordeste brasileiro: cheio de lendas e histórias fantásticas, sendo Santo Antônio de Pádua o protagonista de uma delas (Penna, 2018, p. 337). A filosofia dos seráficos franciscanos é contemplada com a descrição dos azulejos, que decoram, além das paredes do interior da igreja, quatro alas exteriores do monastério: uma que vai da portaria à entrada da igreja, outra que segue em direção ao cemitério dos frades, uma terceira que leva ao interior do claustro, e uma quarta já para fora do monastério. As imagens narrativas desses azulejos, inspiradas na mitologia greco-romana, são reproduções do “Livro de Emblemas”, de Otto Von Veen, Amberes (1608), e compõem uma adaptação do estoicismo à doutrinação cristã. Tanto as imagens narrativas como a sua localização têm fins pedagógicos. Dois desses painéis são descritos e ilustrados no livro da autora (Penna, 2018, p. 341). Encerram esse capítulo a fotografia e a descrição da fachada da Ordem Terceira de São Francisco, ao lado da igreja do Pelourinho (Penna, 2018, pp. 343-344).
A Parte III do livro, “Las epifanias de María en México y Brasil”, é dividida em dois capítulos: dedicados à compreensão dos papéis da mulher, no contexto sociorreligioso do Barroco, e à ascensão das devoções marianas, nas colônias de Nova Espanha e Brasil. No Capítulo I, “Mestizaje y espiritualidad novohispanos: las disonancias entre lo público y lo privado”, é elaborada uma análise da presença da mulher indígena na casa “del patrón”, das relações de gênero entre a cultura espanhola e a indígena e do surgimento do “criollismo” nesse contexto: destacando-se a criação dos filhos do conquistador pelas “chichiguas” (babás indígenas). A subalternidade feminina, “la chingada”, a mulher desprezada, os “filhos bastardos”, a identidade masculina preservada e louvada (“lo padrísimo”) são aportes e temas tratados, também com muito apuro, na leitura dessa parte do livro (Penna, 2018, p. 355). Na seção “La presencia femenina en la espiritualidad novohispana: el mito guadalupano”, são estudadas as devoções femininas no catolicismo mexicano, o comportamento dos espanhóis ante essas manifestações de fé, a interpretação que lhes conferiam os indígenas e como estes, com suas entidades da natureza, seus territórios sagrados, seu Deus dual masculino/feminino, foram se adaptando ao domínio das liturgias marianas, ao mesmo tempo em que resistindo à destruição de suas sociedades, de sua ancestralidade e de sua casta guerreira. Em meio a toda a inculturação e reinvenção do feminino e de seu culto, ouve-se uma voz do cerro paradisíaco de Tepeyac: “¿Acaso no estoy aquí, yo que soy tu madrecita?” (Penna, 2018, p. 365). Com o apoio dos “criollos”, Tonantzin/Guadalupe (Nossa Venerável Mãe) se torna então o mito maior do México e de sua capital. A devoção mariana constrói, em todos os lugares, “Camarines de la Virgen”: para a intimidade da Mãe de Deus! Ao passo que as filhas “excedentes” das famílias espanholas eram enclausuradas em conventos até a morte. Há nessa parte do livro diversas ilustrações: o Deus cristão representado como um monarca europeu, o deslumbramento de um “Camarín de la Virgen”, a arquitetura de um convento para o confinamento de mulheres (Penna, 2018, p. 399). Já o Capítulo II, “Las Marías de Brasil”, relata como se deu, na ambientação patriarcal e escravocrata brasileira, a intrusão da “civilização” portuguesa às circunstâncias locais de exploração das mulheres, e nisso se destaca uma diferença em relação ao caso mexicano: no Brasil não se consolidou, na maior parte do período colonial, a mediação direta com as tradições e as mulheres nativas. Ali, foram as “negras de leite” quem habitaram, desde os porões diaspóricos, as cozinhas e as dependências da Casa Grande, e criaram os filhos dos senhores. Foram as negras as que foram “oferecidas” ao patriarcado, sacrificadas, “consagradas e maternizadas” àquela nova terra. Em evidenciação disso, as duas grandes divindades femininas do Brasil foram forjadas como negras, “morenas”, afro-mestiçadas. Uma imagem negra, sem cabeça, é pescada de um rio no sudeste, em 1717. No norte, outra imagem, também escura, foi encontrada antes, num igarapé, no ano de 1700. Uma Virgem negra e outra cabocla, inventadas pelos jesuítas! Por fim, o apartado “La fuerza espiritual africana” é dedicado a esse relato da presença feminina negra na formação do povo e da religiosidade do país. Não se pode falar de cultura e religiosidade brasileira sem se referir às suas bases afro-diaspóricas (mal aspectadas e brutalmente traficadas), sobre as quais se assentaram os destinos infelizes do Brasil e de seu racismo como nação. Algumas das características das religiões de matrizes africanas são sinteticamente coligidas, e a conclusão é dada com a apresentação da imagem de Iemanjá, a mais importante Orixá do panteão iorubano, cultuada sincreticamente em todo o país.
Por fim, em suas “Conclusiones”, a autora sintetiza o seguinte: i) formaram-se no Barroco as principais (e ainda atuais) bases axiológicas do sujeito moderno, racionalmente dedicado ao domínio do planeta; ii) a esse sujeito lhe interessam, além da ordem, sensações, emoções e impulsos: em expansão e derrisão aos vestígios de suas culpas e confissões, na afirmação de identidades as quais lhe incitem, sempre mais, às empresas do egoísmo maduro e às paixões pessoais; iii) a formação cultural latino-americana, a partir dessas bases barrocas, consorciou-se às sensibilidades indígena, ibérica e africana e criou sociedades em que as contradições da civilização ocidental tornaram-se flagrantes: nas formas coloniais e hierárquicas de dominação e na exacerbação das diferenças e subalternidades; iv) a análise das esferas pública e privada revela as injustiças e desigualdades desses mundos (des)encontrados, e sincretizados sob as fortes impressões do Barroco; v) no México, identifica-se “outra” Espanha, de traços renascentistas/humanistas, desenhados por mãos “criollas”, ainda arraigadas ao mundo medieval; vi) no Brasil, a mentalidade mercantilista dos portugueses adequou a alteridade ao utilitarismo, mediante o qual os ventos da modernidade também dotaram, ao “homo faber”, as expressões do Maneirismo; vii) os traços maneiristas, em sua representação iconológica, herdeira da tradição humanista, conferem à sensibilidade da cultura do corpo no Brasil a inauguração do ideal de superação de seus conflitos raciais e estruturais: no paraíso barroco, na formação borrosa de seu imaginário, os brasileiros se veem como “povo mestiço e feliz”; viii) a expansão da “civilização” ocidental, unida à materialidade colonial e religiosa, acompanham a ação do homem no “Novo Mundo”, tornando-o cada vez mais insaciável. Em nome da fé, ele devora as “novas” terras, as suas riquezas e a sua gente “escura”; ix) “um mundo só não basta” é o simulacro idealista-cristão dos jesuítas, “das muitas companhias de Jesus”, em sensibilização à abertura colonial e mercantilista: representante da sede por conhecimento e aventura, onde, na verdade, ao invés de piedade, o que há é desumano afã por recursos “de outro orbe”, de um “Novo Mundo”; x) se as estetizações barrocas são referência à carência latino-americana “do outro”, a alteridade negada/subalternizada nos conferiu o que há de mais paradoxal em nossas culturas, corpos mestiços e almas de identidades fugidias: a confusão dos sabores, cheiros, cores, ritmos, danças, tons de pele e a vertiginosa fé em Maria - como anteparo ao ódio, ao racismo e à misoginia que nos conformam; xi) o clamor marginal (virginal?) pela “Venerável Mãe”, seja a Virgem de Guadalupe, N. Sra. Aparecida, a Virgem Cabocla da Amazônia ou Iemanjá, invoca à reconciliação com a Terra (e com o Mar!). Porém, como sói acontecer, os fantasmas esquecidos voltam para reclamar justiça! Nesse caso, também as idealizações femininas se conflagram! Despojadas das consagrações da maternidade e livres das seduções de míticas liturgias, as nossas ancestrais abjuram todos os sacrifícios cometidos como culto ao estupro, à violação e à exploração de seus corpos: nunca, jamais eleitos por vozes ou decisões voluntárias!
Referências
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Wilson, Michael G., Broccoli, Barbara (Produtores), & Apted, Michael (Diretor). (1999). 007 The World is not enough [DVD]. Estados Unidos: Metro Goldwyn-Mayer.
Notas de autor