Revista de Ciencias Jurídicas N° 164 (1-29) MAYO-AGOSTO 2024
Da fragmentação do direito à liberdade de expressão e do Estado
Democrático Brasileiro no governo Bolsonaro (2018-2022)
The fragmentation of the right to freedom of expression and the Brazilian
Democratic State in the Bolsonaro government (2018-2022)
Rocco Antonio Rangel Rosso Nelson
(Recibido: 16/01/24 • Aceptado: 07/04/24)
Brasil, Río Grande del Norte. Artigo de investigação elaborado de estudo desenvolvido na linha de
pesquisa “Democracia, Cidadania e Direitos Fundamentais”, inscrito no Grupo de Estudo e Pesquisa em
Extensão e Responsabilidade Social, do Instituto Federal do Rio Grande do Norte IFRN, Brasil.
Doutorando em Direito pela Universidade de Marília UNIMAR. Mestre em Direito Constitucional pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFRN. Especialista em Ministério Público, Direito e
Cidadania pela Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Norte. Especialista em Direito Penal
e Criminologia pela Universidade Potiguar. Especialista em Direito Eletrônico pela Universidade Estácio de
Sá. Líder do Grupo de Estudo e Pesquisa em Extensão e Responsabilidade Social, vinculado a linha de
pesquisa “Democracia, Cidadania e Direitos Fundamentais” do Instituto Federal do Rio Grande do Norte
IFRN, campus Natal-Central. Professor efetivo de Direito do Instituto Federal do Rio Grande do Norte
IFRN, campus Natal-Central. E-mail: rocconelson@hotmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4169-
1827
ROCCO ANTONIO RANGEL ROSSO NELSON: Da fragmentação do direito à liberdade de expressão e do
Estado Democrático Brasileiro no governo Bolsonaro (2018-2022)
RESUMO
O presente estudo trata da temática da democracia, sendo abordado sua associação com o
direito de liberdade de expressão como indicador do nível de democracia do Estado. A
problemática versa sobre aferir se sucedeu degradação na democracia brasileira, no governo
Bolsonaro (2018-2022) com ascendência da ultradireita e se esse status democrático está
correlacionado com conjunto de atos institucionais que buscaram constranger o exercício
do direito à liberdade de expressão. A pesquisa em tela, fazendo uma abordagem
quantitativa, utiliza-se de método empírico com base em dados secundários em que se
utiliza procedimento de pesquisa bibliográfica e documental visita a legislação, a doutrina e
a jurisprudência realizando-se uma análise hipotético-dedutivo de caráter descritivo, tendo
por objetivo avaliar o status da democracia brasileira em relação as tentativas de limitação
do direito da liberdade de expressão pelos órgãos institucionais.
PALAVRAS-CHAVE: Liberdade de expressão. Mitigação. Regime democrático.
Fragilização. Governo Bolsonaro.
ABSTRACT
The present study deals with the theme of democracy, addressing its association with the
right to freedom of expression as an indicator of the level of democracy in the State. The
issue is about assessing whether there has been degradation in Brazilian democracy, in the
Bolsonaro government (2018-2022) with the ascendancy of the ultra-right and whether this
democratic status is correlated with a set of institutional acts that sought to constrain the
exercise of the right to freedom of expression. The on-screen research, taking a quantitative
approach, uses an empirical method based on secondary data in which a bibliographic and
documental research procedure is used, visiting legislation, doctrine and jurisprudence,
performing a hypothetical-deductive analysis of a descriptive nature, with the objective of
evaluating the status of Brazilian democracy in relation to attempts to limit the right to
freedom of expression by institutional bodies.
KEYWORD: Freedom of expression. Mitigation. Democratic regime. Fragility.
Bolsonaro government.
SUMÁRIO: I. Introdução. II. Referencial teórico: 1. “Modelos de democracia”; 2. Como
as democracias morrem. III. Constituição de 1988 e o direito a liberdade de expressão: 1.
Previsão constitucional; 2. Restrições ao exercício da liberdade de expressão; 2.1.
Contornos da liberdade de expressão a partir da jurisprudência do STF; 2.1.1. Caso
Ellwanger; 2.1.2. Marcha da maconha; 2.1.3. Liberdade de cátedra; 2.1.4. Crime de
desacato; 2.1.5. Proselitismo religioso; 2.1.6. Tatuagem. IV. Cruzamento de dados: 1.
Relatório global de expressão da ong artigo 19; 2. Relatório do index de democracia. V.
Considerações finais. VI. Referências
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I. INTRODUÇÃO
A democracia ocidental, na contemporaneidade, tem sido testada em seus pilares em
face de uma renovação política de ultradireita que busca implementar pautas
“conservadoras” que vêm por colidir com um conjunto de valores constitucionalmente
aceitos, bem como prescritos em convenções internacionais, com um claro objetivo de
descontruir as normas dos direitos humanos.
No Brasil, com a ascensão do chamado “bolsonarismo”, o qual se deu com a
aproximação da classe política com as religiões de massas, tem-se uma formação de uma
distopia cuja ações seriam legitimadas a partir de um “estado de emergência” permanente
do Estado, o qual precisaria digladiar-se com inimigos fictícios: o comunismo, o
socialismo, o “globalismo”, etc., que ameaçariam a nação, a estrutura familiar e os dogmas
religiosos.
O cenário retratado torna-se um ambiente propício para a não aceitação dos
pensamentos e valores divergentes, de sorte que um dos primeiros direitos de liberdade (um
dos pressupostos constituidores da dignidade da pessoa humana) que se intenta oprimir é a
liberdade de expressão, posto que sem ela o status quo é perpetuado e, consequentemente, a
democracia é esfacelada e se tem a instalação do autoritarismo e da corrupção.
O referido quadro de referência compõe uma moldura a realidade brasileira na
gestão do ex-presidente Bolsonaro.
Em clara tentativa de conter as críticas da imprensa e da sociedade civil, o chefe do
Poder Executivo Federal, geralmente por meio dos órgãos institucionais, socorreu-se de
meios intimidatórios através de instrumentos jurídicos, como instauração de inquéritos
policiais, ações penais, bem como de prisões (de natureza cautelar), com fundamento na
extinta Lei de Segurança Nacional Lei 7.170/83, o qual vigorou até 31 de agosto de
2021, sendo revogada através da Lei n° 14.197/21, de 1º de setembro de 2021.
Explicita alguns casos para demonstrar o uso questionável da referida lei:
a) 16 de junho de 2020 o ex-Ministro da Justiça, André Mendonça, solicita à
Polícia Federal e à Procuradoria-Geral da República a abertura de investigação em relação
ao chargista Renato Aroeira pela publicação no blog do jornalista Ricardo Noblat de uma
imagem do presidente da República pintando uma suástica na cruz vermelha (indicativo de
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Estado Democrático Brasileiro no governo Bolsonaro (2018-2022)
unidades de saúde/hospitais) com os dizeres “vamos invadir outro”, fazendo referência às
invasões das unidades de saúde que aconteceram à época;
b) julho de 2020 ex-Ministro da Justiça, André Mendonça, requisita abertura de
inquérito policial em desfavor do advogado Marcelo Feller que afirmou que o presidente
era parcialmente responsável pelas mortes por Covid-19 (com fundamentos em estudos de
pesquisadores da Universidade de Cambridge e da Fundação Getúlio Vargas), no programa
“O Grande Debate”, da emissora CNN;
c) julho de 2020 ex-Ministro da Justiça, André Mendonça, requisita abertura de
inquérito policial em relação ao jornalista Hélio Schwartsman, que publicou artigo em sua
coluna na Folha de São Paulo com o título “Por que torço para que Bolsonaro morra”;
d) dezembro de 2020 ex-Ministro da Justiça, André Mendonça, solicita abertura
de inquérito policial em relação ao professor e sociólogo Tiago Costa Rodrigues que
contratou a instalação de dois outdoors, na cidade de Palmas/TO, com críticas ao presidente
da República, destacando-se a seguinte peça: “Cabra à toa, não vale um pequi roído.
Palmas quer impeachment já”;
e) março de 2021 notícia-crime ofertada pelo vereador Carlos Bolsonaro, em
delegacia da polícia civil, no Rio de Janeiro, acarreta instauração de investigação em
relação ao empresário e youtuber Felipe Neto, posto que fez uma publicação de vídeo
crítico quanto à condução da crise sanitária no Brasil, vindo a chamar o presidente da
República de “genocida”;
f) março de 2021 a Polícia Militar do Distrito Federal prende cinco ativistas, em
manifestação na Praça dos Três Poderes, que estenderam uma faixa com os dizeres
“Bolsonaro Genocida”;
g) junho de 2021 Polícia Militar prende em flagrante delito professor e diretor
estadual do PT, em Goiás, por manter a faixa, em seu carro, “fora Bolsonaro genocida!”.
Destaca-se que, nesse caso, não ocorreu a instauração de inquérito policial pela Polícia
Federal.
Em todos os casos retro, os críticos do chefe do Poder Executivo Federal tiveram
suas condutas subsumidas ao tipo penal do art. 26 da Lei nº 7.170/83:
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Art. 26 - Caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado
Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal,
imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação.
Pena: reclusão, de 1 a 4 anos.
Parágrafo único - Na mesma pena incorre quem, conhecendo o caráter
ilícito da imputação, a propala ou divulga”.
O uso da revogada Lei 7.170/83 (Lei de Segurança Nacional) fora feito não
apenas pelo Poder Executivo Federal como também pelo Poder Judiciário, no âmbito do
Supremo Tribunal Federal, no famoso inquérito das fake news (INQ 4.781 sigiloso), o
qual fora instaurado em março de 2019, pelo Ministro Dias Toffoli (a época Presidente do
STF), tendo por relator o Ministro Alexandre de Morais, com o fim de apurar notícias falsas
que atingiram a honra e comprometeram a segurança dos membros do STF.
Mais recentemente, em 23 de junho de 2021, tem-se a instauração da ação penal
1044 que cominou pela condenação do Deputado Federal Daniel Silveira por crimes
prescritos na Lei de Segurança Nacional, cuja conduta se apresentou como um “ataque” aos
ministros do STF (AP n° 1044).
Diante desse contexto político em que no Brasil se chegou ao ponto de resgatar a
mal-afamada Lei de Segurança Nacional, tanto com o fito de conter as críticas ao chefe do
Poder Executivo Federal como também em relação ao Supremo Tribunal Federal, a
questão-problema do presente ensaio é: ocorreu limitação do direito à liberdade de
expressão, no Brasil, entre 2018-2022? Se positivo, isso constitui uma variável para um
processo de fragmentação do regime democrático brasileiro?
Em face do exposto, a pesquisa em tela, a partir de uma abordagem quantitativa, faz
uso de método empírico com base em dados secundários em que se utiliza procedimento de
pesquisa bibliográfica e documental em que se realiza uma análise hipotético-dedutivo de
caráter descritivo, tendo por objetivo avaliar o status da democracia brasileira posto as
tentativas de limitação do direito da liberdade de expressão pelos órgãos institucionais.
Para responder o problema ventilado realizará o cruzamento de informações
disponibilizados nos relatórios da Democracy index (vinculado a revista The Economist) de
2017 e 2021, que ranqueia o status democrático dos países, com os dados do relatório
global de expressão da ONG artigo 19, referente a 2021/2022. Com esse recorte busca
comparar a situação do Brasil no final do último governo (2017) em relação ao governo
ROCCO ANTONIO RANGEL ROSSO NELSON: Da fragmentação do direito à liberdade de expressão e do
Estado Democrático Brasileiro no governo Bolsonaro (2018-2022)
atual e responder se de fato embaraços a liberdade de expressão foram constatadas (ou se os
fatos descritos acima se apresentam como situações isoladas) e a respectiva repercussão (se
existente) no nível da democracia brasileira.
Quanto à estruturação, o presente ensaio dar-seda seguinte maneira: apresentação
de referencial teórico nas obras “Como as Democracias Morrem” e “Modelos de
Democracia”; construção da dogmática do direito da liberdade de expressão na
Constituição de 1988; apresentação e análise do cruzamento de dados extraído do relatório
global da expressão do Artigo 19 e dos relatórios Democracy Index.
II. REFERENCIAL TEÓRICO
A justificativa para utilizar as obras “Modelos de Democracia” e “Como as
Democracias Morrem” como base teórica se dar em face de que em ambas as obras
apontam a liberdade de expressão como elemento base de um regime democrático.
1. “MODELOS DE DEMOCRACIA”
No estudo desenvolvido pelo professor da Universidade da Califórnia, Arend
Lijphart, ele compara 36 democracias (com uma população de pelo menos 250 mil pessoas)
que assim se apresentavam em 2010 e que vinham de forma ininterrupta nesse regime
desde 1989 ou anterior, ou seja, com pelo menos 20 anos de governos democráticos.
1
O autor explicita que apesar das divergências entre os cientistas políticos quanto a
definição e mensuração de democracia um certo consenso no que tange aos 8 critérios,
apontados por Robert Dahl, em 1971, que sustentação a uma democracia: direito a voto;
direito de ser eleito; direito dos líderes políticos de competirem por apoio e votos; eleições
livres e honestas; liberdade de reunião; liberdade de expressão; fontes alternativas de
informação; e instituições capazes de fazer com que as medidas do governo dependam do
voto e de outras manifestações da vontade popular.
2
1
Cf. Lijphart, Arend. Modelos de democracia. 5° ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021, p. 73.
2
Cf. Lijphart, Arend. Modelos de democracia. 5° ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021, ps. 73-74.
Revista de Ciencias Jurídicas N° 164 (1-29) MAYO-AGOSTO 2024
Ele aponta que esses requisitos se encontram implícitos nas palavras de Lincoln que
afirma que a democracia é o “governo do povo para o povo”. Explica:
(...). Por exemplo, a expressão “pelo povo” contém implicitamente o
sufrágio universal, o acesso aos cargos públicos e eleições livres e
honestas. As eleições não podem ser livres e honestas se não houver
liberdade de expressão e de reunião, tanto antes das eleições quanto no
período entre as mesmas. De modo similar, “para o povo” contém
implicitamente o oitavo critério de DahI, o da responsabilidade do
governo para com as preferências dos eleitores. (...).
3
Constate que independentemente de controvérsias quanto a definição e qual o
melhor modelo de democracia é certo que a liberdade de expressão se constitui um
elemento motriz da adoção e manutenção de um regime democrático.
2. COMO AS DEMOCRACIAS MORREM
Quanto ao trabalho dos professores de Havard, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt,
eles apontam que as democracias não são mais colapsadas por ditaduras decorrente de
fascismo, comunismo ou de cunho militar (não tanques nas ruas, congressos não são
fechados, constituições não são suspensas). Desde a guerra fria, as democracias têm ruido
no âmago dos próprios governos eleitos, ou seja, o retrocesso tem iniciado nas urnas,
mantendo-se um verniz da democracia de forma que os alarmes sociais não são disparados
de maneira que a erosão do regime democrático ocorre de forma imperceptível.
4
Nesse processo de subversão da democracia para um regime autocrata percebe-se
um paradoxo: o demagogo extremista eleito usa as próprias instituições democráticas para
sutilmente fragilizar a própria democracia (compra ou intimidam a mídia e o setor privado;
estruturaram tribunais; aparelham agências neutras; alteram disposições legais e
constitucionais)
5
O sistema de checks and balances prescrito nas constituições é o instrumento
fundante para a manutenção de um regime democrático. Todavia, eles funcionam
corretamente a partir de duas normas democráticas não escritas: tolerância mútua e
contenção (comedimento dos políticos no uso de suas prerrogativas). Tem-se deparado com
3
Lijphart, Arend. Modelos de democracia. 5° ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021, p. 74.
4
Cf. Ziblatt, Daniel; Levitsky, Steven. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018, ps. 16-17.
5
Cf. Ziblatt, Daniel; Levitsky, Steven. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018, ps. 18-19.
ROCCO ANTONIO RANGEL ROSSO NELSON: Da fragmentação do direito à liberdade de expressão e do
Estado Democrático Brasileiro no governo Bolsonaro (2018-2022)
uma realidade em que uma polarização sectária tem acarretado a redução da tolerância e a
não contenção de forma que a eficácia do checks and balances fica comprometida pondo a
democracia em perigo.
6
Steven Levitsky e Daniel Ziblatt desenvolveram um quadro com sinais de alerta
para indicar se o político possui uma vertente de cunho autoritário a partir de 4 dimensões:
“(...). 1) rejeitam, em palavras ou ações, as regras democráticas do jogo; 2) negam a
legitimidade de oponentes; 3) toleram e encorajam a violência; e 4) dão indicações de
disposição para restringir liberdade civis de oponentes, inclusive a mídia. (...)”.
7
Alerta os professores retro que o político que se enquadra em pelo menos em uma
das dimensões já acarreta motivo de alerta.
8
Destaca-se, para fins desse ensaio, a quarta dimensão, que se refere à propensão a
restringir liberdade civis de oponentes, inclusive da mídia, o qual tem os seguintes
indicadores: “apoiam leis ou políticos que restringem liberdade civis como expansões de
leis de calúnia e difamação ou leis que restrinjam protestos e críticas ao governo ou certas
organizações cívicas ou políticas”; “ameaçam tomar medidas legais ou outras ações
punitivas contra seus críticos em partidos rivais, na sociedade civil ou na mídia”; “elogiam
medidas repressivas tomadas por outros governos, tanto do passado quanto em outros
lugares do mundo”.
9
6
Cf. Ziblatt, Daniel; Levitsky, Steven. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018, ps. 19-20.
7
Ziblatt, Daniel; Levitsky, Steven. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018, p. 32.
8
Cf. Ziblatt, Daniel; Levitsky, Steven. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018, p. 32.
9
Cf. Ziblatt, Daniel; Levitsky, Steven. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018, p. 34.
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Tabela 01 indicadores de perfil autoritário
1. REJEITAM, EM
PALAVRAS OU AÇÕES,
AS REGRAS
DEMOCRÁTICAS DO
JOGO;
a. Os candidatos rejeitam a Constituição ou expressam disposição de
violá-la?
b. Sugerem a necessidade de medidas antidemocráticas, como
cancelar eleições, violar ou suspender a Constituição, proibir certas
organizações ou restringir direitos civis ou políticos básicos?
c. Buscam lançar mão (ou endossar o uso) de meios
extraconstitucionais para mudar o governo, tais como golpes
militares, insurreições violentas ou protestos de massa destinados a
forçar mudanças no governo?
d. Tentam minar a legitimidade das eleições, recusando-se, por
exemplo, a aceitar resultados eleitorais dignos de crédito?
2. NEGAM A
LEGITIMIDADE DE
OPONENTES;
a. Descrevem seus rivais como subversivos ou opostos à ordem
constitucional existente?
b. Afirmam que seus rivais constituem uma ameaça, seja à segurança
nacional ou ao modo de vida predominante?
c. Sem fundamentação, descrevem seus rivais partidários como
criminosos cuja suposta violação da lei (ou potencial de fazê-lo)
desqualificaria sua participação plena na arena política?
d. Sem fundamentação, sugerem que seus rivais sejam agentes
estrangeiros, pois estariam trabalhando secretamente em aliança
com (ou usando) um governo estrangeiro com frequência um
governo inimigo?
3. TOLERAM E
ENCORAJAM A
VIOLÊNCIA;
a. Têm quaisquer laços com gangues armadas, forças
paramilitares, milícias, guerrilhas ou outras organizações
envolvidas em violência ilícita?
b. Patrocinaram ou estimularam eles próprios ou seus
partidários ataques de multidões contra oponentes?
c. Endossaram tacitamente a violência de seus apoiadores,
recusando-se a condená-los e puni-los de maneira categórica?
d. Elogiaram (ou se recusaram a condenar) outros atos
significativos de violência política no passado ou em outros lugares
do mundo?
4. DÃO INDICAÇÕES
DE DISPOSIÇÃO PARA
RESTRINGIR
LIBERDADE CIVIS DE
OPONENTES,
INCLUSIVE A MÍDIA.
a. Apoiaram leis ou políticas que restrinjam liberdades civis, como
expansões de leis de calúnia e difamação ou leis que restrinjam
protestos e críticas ao governo ou certas organizações cívicas ou
políticas?
b. Ameaçaram tomar medidas legais ou outras ações punitivas contra
seus críticos em partidos rivais, na sociedade civil ou na mídia?
c. Elogiaram medidas repressivas tomadas por outros governos, tanto
no passado quanto em outros lugares do mundo?
Fonte: Elaborado pelos autores a partir da tabela desenha por Steven Levitsky e Daniel Ziblatt.
10
10
Cf. Ziblatt, Daniel; Levitsky, Steven. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018, ps. 33-
34.
ROCCO ANTONIO RANGEL ROSSO NELSON: Da fragmentação do direito à liberdade de expressão e do
Estado Democrático Brasileiro no governo Bolsonaro (2018-2022)
Pode-se fazer a ilação, a partir da obra dos professores de Harvard, de que a
liberdade de expressão está intimamente relacionada com a democracia, de sorte que
constitui um dos meios para mensurar se o Estado se encontra e se mantém em um regime
democrático ou se desviou-se na direção do autoritarismo. Afira que dos três indicadores da
quarta dimensão, dois fazem referência a questão da liberdade de expressão.
É explicitado pontualmente por Steven Levitsky e Daniel Ziblatt que nos governos
de autocratas há uma forte tendência em restringir as liberdades civis da oposição política e
de seus críticos (mídia e sociedade civil), sendo marca a intolerância ao pensamento
divergente e o uso de instrumentos jurídicos para silenciar.
11
Os referidos autores retratam a realidade norte americana no governo de Donald
Trump, mas avalie como esse desenho do processo de fissura do regime democrático
americano se amolda com exatidão com o regime político que se implantou em 2018, no
Brasil.
III. CONSTITUIÇÃO DE 1988 E O DIREITO A LIBERDADE DE EXPRESSÃO
O direito à liberdade de expressão está associado, historicamente, ao combate ao
autoritarismo e abusos do Estado no que tange ao cidadão, sendo consagrada de forma
ampla a partir da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de
1789, no artigo 11: “A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos mais
preciosos direitos do Homem; todo o cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir
livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na
Lei”.
Há expressa disposição, também, na Declaração Universal dos Direitos Humanos de
1948, em seu artigo 19: “Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de
expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar,
11
Cf. Ziblatt, Daniel; Levitsky, Steven. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018, p. 69.
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receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio
de expressão”.
A legitimidade de um Estado e de um governo tem por pilar, necessário, o não
embaraço do exercício da liberdade de expressão, posto que sua proteção, numa perspectiva
instrumental, diz respeito ao processo de administração e organização da sociedade como
um todo. Restringir a liberdade de expressão em descompasso com a razoabilidade é
impedir que os cidadãos possam participar da administração da coisa pública por meio de
uma fiscalização adicional.
12
Todavia, é imperioso afirmar que o direito de liberdade de expressão não constitui
um direito absoluto, por uma questão de coerência interna e da necessidade de harmonia
entre os direitos individuais.
13
Pode-se aferir que na parte final do artigo retro da Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão de 1789, um dos documentos-base dos primórdios do Estado Liberal,
prescrição, de forma nítida, da reponsabilidade advinda do abuso no exercício do
direito de liberdade de expressão.
É certo que se pode vislumbrar a liberdade de expressão em uma perspectiva
substantiva e instrumental. A primeira refere-se ao âmago da liberdade de expressão que
consiste no direito de pensar, firmar uma opinião e exteriorizar a mesma, sem ter que se
12
“Entre os direitos constitucionais, a liberdade de expressão é um dos mais preciosos. Vale a pena protegê-lo
mesmo ou especialmente em circunstâncias extremas, pois a liberdade de expressão aumenta a
probabilidade de as violações de outros direitos serem levadas ao conhecimento das autoridades. Ao lado de
suas muitas funções psicológicas, morais, artísticas, religiosas e econômicas, a liberdade de expressão é uma
precondição essencial do autogoverno democrático. Ajuda a assegurar que as autoridades prestem contas de
seus atos, enxuga a corrupção no governo, lança luz sobre os abusos do poder e aumenta a qualidade das
deliberações políticas, na medida em que possibilita que especialistas fora do governo e o próprio público em
geral façam sugestões e críticas. Em países menos desenvolvidos, a liberdade de expressão pode até ajudar a
prevenir a fome endêmica. (...)”. (Holmes, Stephen; Sustein, Cass. O custo dos direitos: por que a Liberdade
depende dos impostos. São Paulo: WMF/Martins Fontes, 2019, p. 86)
13
“No entanto, ainda que a liberdade de expressão seja um dos suportes vitais da democracia, essencial à
concretização e ao aperfeiçoamento do Estado Democrático, uma vez sendo admitida de forma absoluta e
irrestrita, estar-se-ia dando margem à colisão entre direitos fundamentais, pelo que se justifica a admissão de
limites a tal direito”. (Wermuth, Maiquel Angelo Dezordi; Schafer, Cibele Franco Bonoto. O Tratamento do
Direito à Liberdade de Expressão como Fundamento Democrático e a Corte Europeia de Direitos Humanos.
IN: Revista Argumentum, Marília/SP, v. 18, n. 3, pp. 679-697, Set.-Dez. 2017, p. 684)
“A existência dessas limitações ao direito à liberdade de expressão se explica tanto (i) pela necessidade de
harmonia entre os direitos individuais como (ii) por questão de coerência, visto que seria, no mínimo,
contraditório se a liberdade de expressão, que é um direito engendrado pelo homem para assegurar e
possibilitar sua autodeterminação individual, estivesse em: contradição com essa mesma finalidade, atentando
contra o desenvolvimento á da personalidade individual e desrespeitando direitos essenciais à própria
personalidade”. (Tavares, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p.
558)
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Estado Democrático Brasileiro no governo Bolsonaro (2018-2022)
adequar a modelo ou forma pré-determinada, o que vem por reverberar na
autodeterminação do indivíduo.
14
Já a questão instrumental versa sobre os múltiplos meios
de ventilar o pensamento construído. Ambas as perspectivas estão diretamente relacionadas,
posto que não há liberdade de expressar opiniões, sentimentos, sensações, criatividade, etc.,
sem um meio fático para transmissão.
15
A estrutura fundante do direito à liberdade de expressão constitui-se em seu
exercício independentemente de análise prévia do seu conteúdo por parte do Estado, ou
seja, o direito da veiculação do seu pensamento sem censura.
Frise-se que a vedação da censura não abarca o Estado como todos as demais
entidades sociais, mesmo as de cunho eminentemente privada.
“Igrejas, clubes fechados, partidos políticos, sindicatos, entidades de classe,
associações legalmente constituídas, agremiações profissionais etc. estão impedidos,
constitucionalmente, de estipular censura prévia”.
16
1. PREVISÃO CONSTITUCIONAL
Na Constituição Federal de 1988, o direito geral à liberdade de expressão encontra-
se previsto no art. 5º, IV, in verbis: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o
anonimato;”.
Perceba-se que só pela prescrição alhures tem-se respaldado o direito à liberdade no
ordenamento jurídico brasileiro, sendo viáveis os devidos desdobramentos normativos
próprios do direito de liberdade em questão.
É nesse sentir a lapidar lição de André Ramos Tavares:
Em ntese, depreende-se que a liberdade de expressão é direito genérico
que finda por abarcar um sem-número de formas e direitos conexos e que
não pode ser restringido a um singelo externar sensações ou intuições,
14
“(...). Ora, a liberdade de expressão há de se prestar à realização pessoal, à formação individual, à livre
opção de cada um. Com efeito, não pode ser ela instrumento contrário à realização pessoal. Seria mesmo
contraditório que um fato pudesse, ao mesmo tempo, apoiar-se na liberdade de expressão e violá-la, enquanto
categoria constitucional, em determinado caso concreto”. (Tavares, André Ramos. Curso de Direito
Constitucional. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 556)
15
Cf. Tavares, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, ps. 551-552.
16
Bulos, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 558.
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com a ausência da elementar atividade intelectual, na medida em que a
compreende. Dentre os direitos conexos presentes no gênero liberdade de
expressão podem ser mencionados, aqui, os seguintes: liberdade de
manifestação de pensamento; de comunicação; de informação; de acesso à
informação; de opinião; de imprensa, de mídia, de divulgação e de
radiodifusão. (...).
17
Porém, com o escopo de deixar clarividente o amparo à liberdade de expressão,
posto que a Constituição de 1988 é consequência de um processo de redemocratização do
Brasil em contraposição ao período de ditadura militar, tem-se em outros dispositivos da
Constituição apontamentos específicos quanto à manifestação da liberdade de expressão:
Art. 5º. (...).
(...).
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado
o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a
proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
(...)
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independentemente de censura ou licença;
(...)
Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente,
por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.
(...)
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
(...)
II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a
arte e o saber;
(...)
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a
informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão
qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à
plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de
comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
§ É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e
artística.
Constata-se, nas prescrições constitucionais acima, que a liberdade de expressão
possui um imenso desdobramento em diversas facetas da vida em sociedade, perpassando
pelo exercício de culto religioso, manifestações de natureza cientifica, artística, intelectual,
imunidade parlamentar em relação a opiniões, palavras e votos (com o objetivo de garantir
17
Tavares, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, ps. 550-551.
ROCCO ANTONIO RANGEL ROSSO NELSON: Da fragmentação do direito à liberdade de expressão e do
Estado Democrático Brasileiro no governo Bolsonaro (2018-2022)
ampla proteção ao discurso político), liberdade de cátedra do docente e liberdade de
imprensa.
2. RESTRIÇÕES AO EXERCÍCIO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Não se pode vislumbrar como razoável entender que o núcleo duro da liberdade de
expressão autorizaria o vilipêndio a outros bens constitucionalmente protegidos, como a
honra e a imagem.
A construção de um limite ao exercício da liberdade de expressão consta no art. 5º,
IV, in verbis: “V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da
indenização por dano material, moral ou à imagem;”.
Avaliar-se que pelo texto constitucional tem-se a possibilidade não apenas do direito
de resposta (a Lei nº 13.188, de 11 de novembro de 2015, dispõe sobre o direito de resposta
ou retificação do ofendido em matéria divulgada, publicada ou transmitida por veículo de
comunicação social), mas também da responsabilização de natureza civil pelo dano
carretado.
Com o fito de garantir a possibilidade de responsabilização daqueles que atuaram
em flagrante abuso de direito no exercício da liberdade de expressão o art. 5º, IV, parte
final, da Constituição, veda o anonimato. Tem-se aqui mais uma limitação explícita da
referida liberdade.
De tal sorte, não é lícito o exercício da manifestação de expressão quando de forma
anônima e, em casos de abuso ao exercício da liberdade de expressão, há direito de resposta
proporcional ao agravo e a possibilidade de responsabilização civil (indenização por dano
material, moral e a imagem). A responsabilização na esfera penal também é possível.
2.1. Contornos da liberdade de expressão a partir da jurisprudência do STF
Será explicitado alguns julgados do STF para vislumbrar os contornos
interpretativos quanto ao direito à liberdade de expressão, no Brasil.
2.1.1. Caso Ellwanger
Revista de Ciencias Jurídicas N° 164 (1-29) MAYO-AGOSTO 2024
Trata-se de ação de habeas corpus impetrada no STF com o objetivo de reconhecer
que a conduta do autor e editor Siegfried Ellwanger, o qual editou, distribuiu e vendeu
obras de natureza antissemitas de sua autoria (“Holocausto Judeu ou Alemão? Nos
bastidores da Mentira do Século”) e de outros (“O Judeu Internacional”, de Henry Ford; “A
História Secreta do Brasil”, “Brasil Colônia de Banqueiros” e “Os Protocolos dos Sábios de
Sião”, de Gustavo Barroso; “Hitler Culpado ou Inocente?”, de Sérgio Oliveira; e “Os
conquistadores do Mundo os verdadeiros criminosos de guerra”, de Louis Marschalko),
não constituía crime de racismo stricto sensu, posto que os elementos do tipo referente à
etnia, religião ou procedência nacional foram acrescidos, posteriormente, à Lei 7.716/89
pela Lei 8.081/90. De tal sorte, a prática de racismo decorrente da etnia, religião ou
procedência nacional não seriam imprescritíveis como determina a Constituição Federal.
O referido raciocínio é de uma pobreza jurídica que salta aos olhos, ao tentar
restringir a imprescritibilidade do delito de racismo tão somente aos elementos da raça ou
cor.
Do famoso precedente se extrai que a liberdade de expressão não ampara os
discursos que fazem apologia a ideias discriminatórias, segregacionistas, as quais podem
incitar a marginalização e violência em relação a determinados grupos da população. Ou
seja, as ideias de natureza racista, as quais constituem tipo penal, extrapolam a esfera da
legitimidade da liberdade de expressão.
Aqui cumpre abrir um parêntese e mencionar que o ordenamento jurídico não
permite o chamado discurso de ódio (hate speech), tendo em vista que dar amparo a tal
discurso seria danoso a direitos fundamentais que têm relevância equivalente ou maior que
a liberdade de expressão, como lembra o professor Daniel Sarmento:
Na verdade, quando o Estado se omite diante de uma manifestação
pública de ódio ou desrespeito contra minorias ou até age para protegê-
las, proporcionando, por exemplo, escolta policial para assegurar o
exercício da liberdade de expressão de racistas e neonazistas, como tem
ocorrido algumas vezes nos Estados Unidos , o sinal que se transmite
para o público e para as vítimas é o de que ele não vê nada de errado na
conduta do ofensor. A dor e a sensação de abandono dos alvos destas
manifestações tende a ser amplificada, e o símbolo que fica e todos
ROCCO ANTONIO RANGEL ROSSO NELSON: Da fragmentação do direito à liberdade de expressão e do
Estado Democrático Brasileiro no governo Bolsonaro (2018-2022)
sabemos da importncia dos símbolos na vida social é o de um Estado
cúmplice da barbárie.
18
Lembrar que a problemática decorrente do discurso de ódio tem seio algo
corrente na atualidade com a sua amplificação potencializada pelas redes sociais
em um contexto de polarização política
2.1.2. Marcha da maconha
A Procuradoria-Geral da República impetrou arguição de descumprimento de
preceito fundamental (ADPF 187), com o desiderato de dar uma interpretação conforme
a Constituição, no que tange ao tipo penal do art. 287 do Código Penal (apologia de crime
ou criminoso), com o objetivo de não obstaculizar a manifestação legítima denominada
“marcha da maconha”. O pedido foi julgado procedente nos seguintes termos (ADPF 187):
(...)
- A liberdade de expressão como um dos mais preciosos privilégios dos
cidadãos em uma república fundada em bases democráticas - o direito à
livre manifestação do pensamento: núcleo de que se irradiam os direitos
de crítica, de protesto, de discordância e de livre circulação de ideias
- Abolição penal (“abolitio criminis”) de determinadas condutas puníveis -
debate que não se confunde com incitação à prática de delito nem se
identifica com apologia de fato criminoso - discussão que deve ser
realizada de forma racional, com respeito entre interlocutores e sem
possibilidade legítima de repressão estatal, ainda que as ideias propostas
possam ser consideradas, pela maioria, estranhas, insuportáveis,
extravagantes, audaciosas ou inaceitáveis - o sentido de alteridade do
direito à livre expressão e o respeito às ideias que conflitem com o
pensamento e os valores dominantes no meio social - caráter não absoluto
de referida liberdade fundamental (CF, art. 5º, incisos IV, V e X;
convenção americana de direitos humanos, Art. 13, § 5º) - A proteção
constitucional à liberdade de pensamento como salvaguarda não apenas
das ideias e propostas prevalecentes no âmbito social, mas, sobretudo,
18
Na verdade, quando o Estado se omite diante de uma manifestação pública de ódio ou desrespeito contra
minorias ou até age para protegê-las, proporcionando, por exemplo, escolta policial para assegurar o
exercício da liberdade de expressão de racistas e neonazistas, como tem ocorrido algumas vezes nos Estados
Unidos , o sinal que se transmite para o público e para as vítimas é o de que ele não vê nada de errado na
conduta do ofensor. A dor e a sensação de abandono dos alvos destas manifestações tende a ser amplificada, e
o símbolo que fica e todos sabemos da importncia dos símbolos na vida social é o de um Estado
cúmplice da barbárie”. (Sarmento, Daniel. A liberdade de expressão e o problema do "Hate Speech". In:
Sarmento, Daniel. Livres e iguais: estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p.
44)
Revista de Ciencias Jurídicas N° 164 (1-29) MAYO-AGOSTO 2024
como amparo eficiente às posições que divergem, ainda que radicalmente,
das concepções predominantes em dado momento histórico-cultural, no
âmbito das formações sociais. (...)
- As plurissignificações do art. 287 do código penal: necessidade de
interpretar esse preceito legal em harmonia com as liberdades
fundamentais de reunião, de expressão e de petição - legitimidade da
utilização da técnica da interpretação conforme à constituição nos casos
em que o ato estatal tenha conteúdo polissêmico - arguição de
descumprimento de preceito fundamental julgada procedente. (STF,
Pleno, ADPF 187, Ministro Relator Celso de Mello, julgado em
15/06/2011, publicado no DJe 29/05/2014)
Como é explicitado no julgado, não se pode confundir incitação à prática delitiva, o
que extrapolaria a legitimidade da liberdade de expressão, com a defesa pela
descriminalização de determinado tipo penal. Interpretação em sentido diverso iria
inviabilizar qualquer discurso/debate crítico quanto à reforma penal que sugerisse o abolitio
criminis.
Fica evidente no acórdão que a liberdade de expressão possui um cunho
contramajoritário, ou seja, resguardo na defesa de posições minoritárias.
Faz parte do cleo da liberdade de expressão faculdades referentes a
reinvindicações e protestos, o que é próprio de uma sociedade pluralista e de um governo
democrático, de sorte que o discurso em prol da descriminalização do uso de determinado
entorpecente através de reunião em espaço público é lícito e constitui a base para ruptura de
paradigmas estabelecidos socialmente, sendo irrelevante a maior ou menor receptividade da
ideia veiculada.
2.1.3. Liberdade de cátedra
A liberdade de cátedra versa sobre a liberdade de ensinar do docente para a
propagação do pensamento, da arte e do saber, no complexo processo ensino-
aprendizagem, sendo corolário lógico do princípio do pluralismo de ideias que rege a
educação.
No cenário político, atual, um setor ideológico que busca limitar essa liberdade
de cátedra a partir de uma adoção de um discurso “neutro”, sem “ideologia”, o qual é
conhecido como movimento “escola sem partido”.
ROCCO ANTONIO RANGEL ROSSO NELSON: Da fragmentação do direito à liberdade de expressão e do
Estado Democrático Brasileiro no governo Bolsonaro (2018-2022)
As vezes que esse tipo de questão chegou para análise do STF, as decisões foram
categóricas em reconhecer a amplitude da liberdade de expressão do docente no exercício
do magistério.
Destaca-se, por exemplo, a ação direta de inconstitucionalidade 5537 impetrada
em relação a uma Lei do Estado de Alagoas de 2016 que institucionalizava o Programa
Escola Livre, o qual tinha por fito proibir a prática de doutrinação política e ideológica,
bem como qualquer forma de indução aos alunos de opiniões político-partidárias, religiosa
ou filosófica.
A referida lei alagoana foi julgada inconstitucional, não por vício formal, mas
também por clara desproporcionalidade em tentar restringir a liberdade de cátedra, do
aprender e do pluralismo de ideias. A lei tem por desdobramento a permissibilidade de
persecução de docentes que possuam opiniões diversas da predominante. Esse tipo de lei
suprime a possibilidade de emancipação pela educação restringindo o saber e o pensamento
crítico.
Abaixo, ementa da ADI nº 5637:
Direito constitucional. ão direta de inconstitucionalidade. Programa
Escola Livre. Lei estadual. Vícios formais (de competência e de iniciativa)
e afronta ao pluralismo de ideias. Ação Direta de Inconstitucionalidade
julgada procedente.
(...)
II. Inconstitucionalidades materiais da Lei 7.800/2016 do Estado de
Alagoas:
5. Violação do direito à educação com o alcance pleno e emancipatório
que lhe confere a Constituição. Supressão de domínios inteiros do saber
do universo escolar. Incompatibilidade entre o suposto dever de
neutralidade, previsto na lei, e os princípios constitucionais da liberdade
de ensinar, de aprender e do pluralismo de ideias (CF/1988, arts. 205, 206
e 214).
6. Vedações genéricas de conduta que, a pretexto de evitarem a
doutrinação de alunos, podem gerar a perseguição de professores que não
compartilhem das visões dominantes. Risco de aplicação seletiva da lei,
para fins persecutórios. Violação ao princípio da proporcionalidade
(CF/1988, art. 5º, LIV, c/c art. 1º). 7. Ação direta de inconstitucionalidade
julgada procedente. (STF, Pleno, ADI 5637, Ministro Relator Roberto
Barroso, julgado em 24/08/2020, publicado no DJe 17/09/2020)
Revista de Ciencias Jurídicas N° 164 (1-29) MAYO-AGOSTO 2024
Em decorrência dessas mesmas razões foi declarada inconstitucional a Lei
1.516/2015 do município de Novo Gama/GO, na ADPF nº 457, que proibia a divulgação de
material com referência ao que pejorativamente se conhece por “ideologia de gênero” nas
escolas municipais. Segundo o STF, não clara castração da liberdade de ensino e da
difusão da pluralidade de ideias, mas também a manutenção do status quo quanto à
discriminação e ao tratamento não igualitário quanto à orientação sexual e à identidade de
gênero.
A liberdade de cátedra foi discutida também na ADPF 548, cujo pedido era
declarar inconstitucional interpretações do arts. 24 e 37 da Lei 9.504/97, que justifiquem
atos judiciais ou administrativos em desfavor de manifestações políticas nas universidades:
(...) pelos quais se possibilite, determine ou promova o ingresso de
agentes públicos em universidades públicas e privadas, o recolhimento de
documentos, a interrupção de aulas, debates ou manifestações de docentes
e discentes universitários, a atividade disciplinar docente e discente e a
coleta irregular de depoimentos desses cidadãos pela prática de
manifestação livre de ideias e divulgação do pensamento nos ambientes
universitários ou em equipamentos sob a administração de universidades
públicas e privadas e serventes a seus fins e desempenhos (...). (STF,
Pleno, ADPF 548, Ministra Relatora Cármen Lúcia, julgado em
15/05/2020, publicado no DJe 09/06/2020)
Sucedeu-se que no ano de 2018, em época de campanha eleitoral, alguns juízes
eleitorais determinaram ação policial para a realização de busca e apreensão de panfletos e
materiais de campanha eleitoral, bem como proibiram aulas com temática eleitoral e
reuniões de natureza política.
Teve no caso em tela uma censura através de ato jurisdicional à liberdade de
expressão no âmbito das universidades com desdobramento, também, na liberdade de
cátedra ao impedir e embaraçar aulas com temática política.
Não debate político sem liberdade de expressão. A manifestação de pensamento
político dá-se em todos os espaços da sociedade e com mais razão no seio das
universidades, pelo menos no âmbito de um Estado Democrático de Direito.
A interpretação dada pelos magistrados eleitorais poderia chegar ao absurdo de
inviabilizar, totalmente, disciplinas da ciência política.
ROCCO ANTONIO RANGEL ROSSO NELSON: Da fragmentação do direito à liberdade de expressão e do
Estado Democrático Brasileiro no governo Bolsonaro (2018-2022)
2.1.4. Crime de desacato
Através da ADPF 496, o Conselho Federal da OAB solicita a não recepção do
tipo penal de desacato, art. 331 do Código Penal (Desacatar funcionário público no
exercício da função ou em razão dela: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou
multa), perante a ordem constitucional, por violação, dentre outros preceitos fundamentais,
à liberdade de expressão, visto que “(...) as manifestações sobre agentes públicos são
relevantes para o debate público, não devendo ser cerceadas”. O pedido feito na referida
ação foi julgado improcedente.
Novamente, a liberdade de expressão não é algo absoluto,
19
de sorte que o abuso no
seu exercício pode ser tutelado através da norma penal, por exemplo.
No crime de desacato não se está a conferir um privilégio, mas sim uma proteção à
função pública, de sorte a proibir o menosprezo ao servidor público no exercício de suas
funções. Não se está impedindo que haja críticas, mesmo as veementes, à atuação do
servidor público, mas sim está sendo proibido o desrespeito/menoscabo à função pública.
A crítica dura/ácida/contundente é claramente protegida pela liberdade de
expressão. Todavia, as chamadas “fighting words”, que são aquelas palavras que
configuram estopins para ações, não. Elas se diferenciam posto que a primeira permite a
correção do discurso com a revelação de suas incongruências e falácias. na segunda não
há essa possibilidade.
20
Destaca-se que o crime de desacato é um crime de menor potencial ofensivo, que
se configura na presença do funcionário público, sendo indispensável que a ofensa esteja
relacionada ao exercício da função pública, sob pena de atipicidade. Em suma, tem-se feito
uma interpretação restritiva do tipo penal, de sorte que ele não inibe a liberdade de
expressão às figuras públicas.
2.1.5. Proselitismo religioso
19
Cf. Sarlet, Ingo Wolfgang; Marinoni, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito
Constitucional. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 459.
20
Cf. MENDES, Gilmar; COELHO, Inocêncio Mártires; e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 413.
Revista de Ciencias Jurídicas N° 164 (1-29) MAYO-AGOSTO 2024
A liberdade de expressão, como dito, se interliga com diversos direitos, sendo um
deles o da liberdade religiosa. Em verdade, o exercício da liberdade religiosa pressupõe a
liberdade de expressão, sem a qual não é possível o seu exercício.
Constitui um limite lógico-sistêmico que o exercício da liberdade de expressão não
deve propagar a violência ou o extermínio de direitos básicos.
O STF, em um recurso no habeas corpus 134.682/BA, aduziu que o discurso
discriminatório criminoso ocorre após a superação de três etapas:
(...)
5. O discurso discriminatório criminoso somente se materializa após
ultrapassadas três etapas indispensáveis. Uma de caráter cognitivo, em
que atestada a desigualdade entre grupos e/ou indivíduos; outra de viés
valorativo, em que se assenta suposta relação de superioridade entre eles
e, por fim; uma terceira, em que o agente, a partir das fases anteriores,
supõe legítima a dominação, exploração, escravização, eliminação
supressão ou redução de direitos fundamentais do diferente que
compreende inferior.
(...)
Assim, tendo em vista essa limitação, tem-se admitido uma elasticidade da
liberdade de expressão quando do exercício do proselitismo religioso. No caso concreto,
deferiu-se a ordem para trancar a ação penal contra o autor que por meio de publicação de
livro estimula a comunidade católica a realizar um resgate religioso dos adeptos do
espiritismo, visto a ausência de qualquer sinalização de violência. In verbis:
(...)
7. Hipótese concreta em que o paciente, por meio de publicação em livro,
incita a comunidade católica a empreender resgate religioso direcionado à
salvação de adeptos do espiritismo, em atitude que, a despeito de
considerar inferiores os praticantes de fé distinta, o faz sem sinalização de
violência, dominação, exploração, escravização, eliminação, supressão ou
redução de direitos fundamentais.
8. Conduta que, embora intolerante, pedante e prepotente, se insere no
cenário do embate entre religiões e decorrente da liberdade de
proselitismo, essencial ao exercício, em sua inteireza, da liberdade de
expressão religiosa. Impossibilidade, sob o ângulo da tipicidade
conglobante, que conduta autorizada pelo ordenamento jurídico legitime a
intervenção do Direito Penal.
9. Ante a atipicidade da conduta, dá-se provimento ao recurso para o fim
de determinar o trancamento da ação penal pendente. (STF, Primeira
Turma, RHC 134682/BA, Ministro Relator Edson Fachin, julgado em
29/11/2016, publicado no DJe 29/08/2017)
ROCCO ANTONIO RANGEL ROSSO NELSON: Da fragmentação do direito à liberdade de expressão e do
Estado Democrático Brasileiro no governo Bolsonaro (2018-2022)
No RHC 146.303/RJ o STF entendeu que A incitação ao ódio público contra
quaisquer denominações religiosas e seus seguidores não está protegida pela cláusula
constitucional que assegura a liberdade de expressão”.
O que se pode depreender dos casos analisados pelo STF é que somente o caso
concreto pode dizer se a linha entre discurso religioso e discurso discriminatório foi
ultrapassada, mas o STF deixou fixado que liberdade de crença não ampara qualquer fala
ou atitude que estimule a violência física ou moral contra determinado grupo.
2.1.6. Tatuagem
A mácula a liberdade de expressão é vislumbrada pelo STF quando do julgamento
do Recurso Extraordinário 898450 que ponderava sobre a possibilidade de edital de
concurso público restringir ingresso de candidato que possuísse tatuagem.
Dentre várias violações da administração pública ao vetar o acesso a cargos
públicos das pessoas detentoras de tatuagem é exatamente o direito à liberdade de
expressão.
O que seria a tatuagem senão uma forma de exteriorização da liberdade de
expressão através da pigmentação permanente da pele do corpo, seja veiculando palavras,
frases e/ou desenhos em evidente configuração de manifestação artística. A tatuagem
constitui reflexo da identidade da pessoa.
O desestímulo da prática pelo Estado configura patente intromissão na esfera
privada do cidadão.
Fora nesse sentir a posição do STF sobre a temática:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E
ADMINISTRATIVO. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA.
TEMA 838 DO PLENÁRIO VIRTUAL. TATUAGEM. CONCURSO
PÚBLICO. EDITAL. REQUISITOS PARA O DESEMPENHO DE UMA
FUNÇÃO PÚBLICA.
(...)
5. A tatuagem, no curso da história da sociedade, se materializou de modo
a alcançar os mais diversos e heterogêneos grupos, com as mais diversas
idades, conjurando a pecha de ser identificada como marca de
marginalidade, mas, antes, de obra artística.
Revista de Ciencias Jurídicas N° 164 (1-29) MAYO-AGOSTO 2024
6. As pigmentações de caráter permanente inseridas voluntariamente em
partes dos corpos dos cidadãos configuram instrumentos de exteriorização
da liberdade de manifestação do pensamento e de expressão, valores
amplamente tutelados pelo ordenamento jurídico brasileiro (CRFB/88,
artigo 5°, IV e IX).
7. É direito fundamental do cidadão preservar sua imagem como reflexo
de sua identidade, ressoando indevido o desestímulo estatal à inclusão de
tatuagens no corpo.
8. O Estado não pode desempenhar o papel de adversário da liberdade de
expressão, incumbindo-lhe, ao revés, assegurar que minorias possam se
manifestar livremente.
9. O Estado de Direito republicano e democrático, impõe à Administração
Pública que exerça sua discricionariedade entrincheirada não, apenas, pela
sua avaliação unilateral a respeito da conveniência e oportunidade de um
ato, mas, sobretudo, pelos direitos fundamentais em um ambiente de
perene diálogo com a sociedade.
10. A democracia funda-se na presunção em favor da liberdade do
cidadão, o que pode ser sintetizado pela expressão germânica
Freiheitsvermutung (presunção de liberdade), teoria corroborada pela
doutrina norte-americana do primado da liberdade (preferred freedom
doctrine), razão pela qual ao Estado contemporâneo se impõe o estímulo
ao livre intercâmbio de opiniões em um mercado de idéias (free
marktplace of ideas a que se refere John Milton) indispensável para a
formação da opinião pública.
(...) (STF, Pleno, RE 898.450/SP, Ministro Relator Luiz Fux, julgado
em 17/08/2016, publicado no DJe 31/05/2017)
Como assentado anteriormente, a liberdade de expressão não é absoluta, de tal
maneira, haveria restrição a aludida liberdade de expressão quando diante de tatuagens que
exteriorizassem valores excessivamente ofensivos a dignidade da pessoa humana, que
incite a violência (fighting words), ameaças reais ou obscenidades, o que seriam claramente
incompatíveis com o desempenho das funções públicas.
IV. CRUZAMENTO DE DADOS
Nesse capítulo do artigo será apresentado os dados coletados nos relatórios da
Democracy index (vinculado a revista The Economist), entre os anos de de 2017 e 2021,
bem como os dados do relatório global de expressão da ONG artigo 19, referente a 2021 a
2022, e em seguida será feito o cruzamento de dados para aferir se ocorreu a afetação
quanto ao direito de liberdade de expressão no Brasil.
ROCCO ANTONIO RANGEL ROSSO NELSON: Da fragmentação do direito à liberdade de expressão e do
Estado Democrático Brasileiro no governo Bolsonaro (2018-2022)
1. RELATÓRIO GLOBAL DE EXPRESSÃO DA ONG ARTIGO 19
O referido relatório analisa a situação de 161 países a partir de 25 indicadores para
criar uma pontuação de 1 a 100 para aferir o nível de liberdade de expressão determinando,
assim, uma classificação: 0-19 em crise; 20-39 altamente restrito; 40-59 restrito; 60-
79 pouco restrito; 80-100 aberto.
Quanto aos 25 indicadores são estes os utilizados para a construção da métrica:
esforços de censura na internet; liberdade de debate para homens e mulheres; esforços de
censura pelo governo; autocensura dos meios de comunicação; liberdade de expressão
acadêmica e cultural; consulta às organizações da sociedade civil; sociedade engajada; leis
transparentes com aplicação previsível; assédio a jornalistas; impunidade para assassinato
político; repressão de organizações da sociedade civil; entrada e saída de OSC; ambiente
participativo de OSC; proibição de partidos; liberdade de religião; filtragem de conteúdo na
internet pelo governo na prática; desligamento da internet pelo governo na prática; censura
de redes sociais pelo governo na prática; conteúdo de regulamentação legal da internet;
monitoramento de mídias sociais pelo governo; abordagem de regulamentação de conteúdo
online pelo governo; detenções por conteúdo político; liberdade de reunião pacífica;
liberdade de intercâmbio acadêmico; e abuso de difamação e direito de autor por parte das
elites.
A partir do The Global Expression Report 2022, publicado pelo Artigo 19, em junho
de 2022, pode-se avaliar o nível de liberdade de expressão do Brasil, no recorte proposto de
2017 a 2021. In verbis, tabela com os dados coletados:
Tabela 02 Ranking de liberdade de expressão do Brasil
ANO
PONTUAÇÃO
POSIÇÃO
BRASIL
2017
68
2018
68
2019
53
2020
51
Revista de Ciencias Jurídicas N° 164 (1-29) MAYO-AGOSTO 2024
2021
50
89
Fonte: Elaborado pelo autor.
Evidencia-se que no aspecto que versa sobre o direito de liberdade de expressão o
Brasil vem decaindo vertiginosamente, alterando sua classificação de “pouco restrito” em
2018 para “restrito” em 2019, constatando-se que nesse ano sucedeu a queda na pontuação
de forma mais significativa (15 pontos 22%).
2. RELATÓRIO DO INDEX DE DEMOCRACIA
Como relatado, anteriormente, o Democracy Index está vinculado a revista britânica
The Economist e anualmente fornece um retrato do status da democracia no mundo através
de um ranking que engloba 165 países e 2 territórios vindo a estabelecer a seguinte
classificação: democracia plena; democracia falha; regime híbrido; e regime autoritário.
A referida classificação sucede-se a partir de 5 indicadores: processo eleitoral e
pluralismo; o funcionamento do governo; participação política; cultura política e liberdades
civis.
A compilação dos dados que se extrai do Democracy Index Report dos anos de
2017, 2018, 2019, 2020 e 2021 em relação ao Brasil, pode ser visualizado na tabela abaixo:
Tabela 03 Ranking do Brasil no Democracy Index (2017-2021)
ANO
POSIÇÃO
OVERALL
SCORE
PROCESSO
ELEITORAL E
PLURALISMO
FUNCIONAMENTO
DO GOVERNO
PARTICIPAÇÃO
POLÍTICA
CULTURA
POLÍTICA
LIBERDADE
CIVIS
BRASIL
2017
49
6,86
9,58
5,36
6,11
5,00
8,24
2018
50
6,87
9,58
5,36
6,67
5,00
8,24
2019
52
6,86
9,58
5,36
6,11
5,00
8,24
2020
49
6,92
9,58
5,36
6,11
5,63
7,94
2021
47
6,86
9,58
5,36
6,11
5,63
7,65
Fonte: Elaborado pelo autor.
ROCCO ANTONIO RANGEL ROSSO NELSON: Da fragmentação do direito à liberdade de expressão e do
Estado Democrático Brasileiro no governo Bolsonaro (2018-2022)
Em uma análise apressada dos dados pode-se levar a inferir que de 2017 para 2019
o Brasil diminuiu o seu status democrático e que 2019 para 2021 sucedeu um avanço.
Todavia, essa percepção é equivocada, pois quando se percebe a média da pontuação dos
indicadores há uma pequena alteração entre os anos, tendendo a 6,86 pontos de score.
Durante esse período de 2017 a 2021 o Brasil continuou sendo classificado como
democracia falha. A sua eventual melhora na posição do ranking mundial não se deu por
uma evolução no processo democrático, mas sim porque a democracia em outros países
retrocedeu.
A referida afirmação se constata a partir da tabela 04. Em 2017, o Brasil estava
abaixo, no ranking, da Bulgária e Argentina, na colocação 48 (2017). Entre 2019 à 2021 a
democracia da Bulgária fragiliza-se e despenca da colocação 46 (2018) para 53 (2021). Já
Argentina, apesar de manter sua colocação de 2017 a 2020 tem a diminuição do seu score
de 2019 a 2021, o que levou a colocação 50 (2021). Além disso o score do Brasil de 2017 é
o mesmo em 2021, de sorte que esses dados respaldam a afirmação de que a democracia
brasileira não progrediu, mas sim que ocorreu uma piora no regime democrático de outros
países do ranking.
É válido apontar que de 2017 para 2021 o quantitativo de países classificados como
regimes autoritários saltou de 52 para 59, acarretando, assim, um aumento de 4,2 pontos
percentuais.
Tabela 04 Ranking do Brasil e de alguns países no Democracy Index (2017-2021)
Fonte: Elaborado pelo autor.
Revista de Ciencias Jurídicas N° 164 (1-29) MAYO-AGOSTO 2024
Continuando a avaliação da tabela 03, constata-se que o score geral e a posição do
ranking não revela informações significativas para a presente análise. No entanto, a
percepção muda quando se avalia os indicadores que compõe o score geral.
Quando da análise dos indicadores, isoladamente, pode-se constatar um alto grau de
consistência no que tange ao processo eleitoral e pluralismo; no funcionamento do governo;
e na participação política, visto que os indicadores não se alterarão em 5 anos.
Em relação ao indiciador cultura política a consistência está presente, havendo
apenas uma alteração do indicador em 2020, o qual se manteve em 2021.
no que tange ao indicador das liberdades civis, no qual está inserido o direito de
liberdade de expressão, constata-se que foi o que sofreu maior flutuação de todos os
indicadores, vindo o seu score diminuir sucessivamente nos anos de 2020 (0,30 pt 3,64%)
e 2021 (0,29 pt 3,62%).
Esses valores são expressivos, pois em um cenário em que não variação dos
indicadores ter uma variação sucessiva nos anos, para menos, com valores quase iguais
demonstra o impacto negativo no que envolve as liberdades civis.
Pode aparentar que são variações insignificantes. Porém, tendo por referência o
quadro geral em que 0,01 pt determina a colocação do país, no ranking, uma variação de
0,30 pt é algo impactante na mensuração do nível de democracia.
Afira que é exatamente nos anos de 2020-2021 que o indicador das liberdades civis
caiu, no Brasil, que se tem as sucessivas instaurações de inquéritos baseados na revogada
Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/83), bem como o recebimento da ação penal
1044 que cominou pela condenação do Deputado Federal Daniel Silveira nos tipos penais
da citada lei.
V. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em decorrência do exposto pode-se responder com segurança as perguntas
problemas feitas preambularmente nesse ensaio.
Como se constatou com base no The Global Expression Report 2022, publicado
pelo Artigo 19, sucedeu-se, no Brasil, no período do governo do presidente Jair Bolsonaro,
ROCCO ANTONIO RANGEL ROSSO NELSON: Da fragmentação do direito à liberdade de expressão e do
Estado Democrático Brasileiro no governo Bolsonaro (2018-2022)
uma limitação indevida ao exercício do direito à liberdade de expressão, tendo a
classificação mudado de “pouco restrito” para “restrito”.
em relação aos relatórios da Democracy Index, apesar do score geral do Brasil de
2017 ser o mesmo em 2021, constatou uma queda significativa no indicador da liberdade
civis de 2019 a 2021, o que impediu a democracia brasileira progredir e evidencia,
empiricamente, que a liberdade de expressão é uma variável fundamental para a
manutenção e progresso da democracia sendo diretamente proporcional (ou seja, quanto
maior liberdade de expressão maior nível de democracia).
Em síntese: os dados do The Global Expression Report 2022 com os relatórios da
Democracy Index revelam o retrocesso do sistema democrático brasileiro, no governo atual,
em decorrência de um processo de constrangimento do direito de liberdade de expressão, o
que permite evidenciar o chamado “terror branco”,
21
em que a liberdade de expressão é
sistematicamente atacada de forma sutil (inquéritos contra os críticos do chefe do Poder
Executivo Federal, inquérito “do fim do mundo” e ação penal n° 1044) de forma a acarretar
a autocensura através da intimidação e do medo.
VI. REFERÊNCIAS
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UOL, 2021. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/colunas/chico-
alves/2021/03/18/policia-militar-usa-lsn-e-prende-ativistas-por-chamar-bolsonaro-
de-genocida.htm>. Acessado em: 20 de julho de 2022.
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2021.
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Colnado, Cláudio de Oliveira Santos. Liberdade de expressão na internet: desafios
21
Cf. Wong, Joshua. Democracia ameaçada. Barueri: Faro Editorial, 2020, p. 189.
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regulatórios e parâmetros de interpretação. Salvador: Juspodivm, 2019.
Economist Intelligence. Democracy index 2018: Me too? Political participation, protest
and democracy. 2019.
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Mendes, Gilmar Ferreira; Coelho, Inocêncio Mártires; Branco, Paulo Gustavo Gonet.
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Sarlet, Ingo Wolfgang; Marinoni, Luiz Guilherme; Mitidiero, Daniel. Curso de Direito
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Daniel. Livres e iguais: estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen
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Stanley, Jason. Como funciona o fascismo a política dos “nós” e “eles”. 5ª ed. Porto
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Wermuth, Maiquel Angelo Dezordi; SCHAFER, Cibele Franco Bonoto. O Tratamento do
Direito à Liberdade de Expressão como Fundamento Democrático e a Corte
Europeia de Direitos Humanos. IN: Revista Argumentum, Marília/SP, v. 18, n. 3, pp.
679-697, Set.-Dez. 2017. Disponível em:
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Wong, Joshua. Democracia ameaçada. Barueri: Faro Editorial, 2020.
Ziblatt, Daniel; LEVITSKY, Steven. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar,
2018.