Maçonaria e anticlericalismo no jornal O Livre Pensador
Freemasonry and anticlericalism in O Livre Pensador Newspaper
Michel Goulart da Silva
Instituto Federal de Educación, Ciencia e Tecnología Catarinense, Brasil
Recepción: 19 de septiembre 2019/Aceptación: 2 de noviembre de 2019
doi: https://doi.org/10.15517/rehmlac.v11i2.38499
Palavras-chave
Anticlericalismo; O Livre Pensador; Maçonaria; Primeira República; Questão Religiosa.
Key words
Anticlericalism, O Livre Pensador, Freemasonry, First Republic, Religious Question.
Resumo
Neste artigo discute-se como se expressou o anticlericalismo no jornal O Livre Pensador, publicado em São Paulo, a partir de 1903, e sua relação com a Maçonaria. Nas páginas do jornal pode-se identificar as particularidades do anticlericalismo em âmbito nacional e internacional e sua relação com outras manifestações ideológicas, como o socialismo e o positivismo. Pode-se também analisar tanto sua relação com organizações operárias como os embates travados entre anticlericais e a Igreja Católica na Primeira República.
Abstract
This paper discusses how anticlericalism was expressed in the newspaper O Livre Pensador, first published in Sao Paulo, Brazil in 1903, and its relationship with Freemasonry. In its pages one can identify on one hand, the peculiarities of anticlericalism within a national and international scope and contrast its relationship with other ideological manifestations such as socialism and positivism. On the other hand, one can also analyze both their relationship with workers’ organizations and the clashes between anti-clerics and the Catholic Church in the First Republic.
No Brasil, o período conhecido como Primeira República foi marcado pela forte afronta à tradição católica, com o anticlericalismo manifestando-se por meio de uma ativa militância política. Nesse período, o anticlericalismo agregou elementos de várias posições políticas e sociais, entre os quais setores da Maçonaria, liberais, positivistas, socialistas e anarquistas, reunindo “aqueles que se insurgiram, abertamente ou mesmo de forma mais velada, contra a Igreja e adotaram uma atitude crítica contra a instituição eclesiástica e sua ordem sacerdotal”.1 Essas expressões do anticlericalismo são respostas de diferentes setores socioculturais às transformações que estavam vivenciando. Mostram também os conflitos vivenciados pela Igreja que, atacada em todo o mundo, no Brasil perdeu a tutela sobre o Estado com a implantação do regime republicano.
Parte dos confrontos dos anticlericais com a Igreja foram mostrados nas páginas do jornal O Livre Pensador. Editado entre 1903 e 1915, o jornal, que tinha como responsáveis o maçom Everardo Dias e Antonio Garcia Vieira, “defendia a liberdade religiosa e de imprensa, cultuando a razão contra o conservadorismo da Igreja Católica”.2 O jornal publicava uma diversidade de texto problematizando a presença da Igreja em diferentes esferas da sociedade. Em um desses textos, afirmava-se:
O progresso muitas vezes precisa da destruição do antigo, quando este o estorva e se opõe à sua marcha triunfante.
Assim a religião, por muito prestígio que lhe queiram emprestar, marca invariavelmente um ponto de regresso no caminho da civilização.
Abaixo, portanto, as velharias inúteis! Não importa que nos saiam ao caminho os zelosos mastins da religião: os seus dentes, velhos e gastos, já não nos ferem nem pungem.3
Os anticlericais denominavam-se “livres-pensadores”, propondo a independência da sociedade civil em relação à ingerência do clero na vida privada ou nas atividades coletivas. Embora não seja possível apontar um conceito preciso, a ideia de “livre pensamento” está associada à ascensão do ceticismo e do racionalismo, a partir do século XVII, se referindo de forma genérica a “pessoas cujo pensamento não seguia as normas religiosas do período”.4 Everardo Dias sistematizou a ideia de livre pensamento como
o direito e o dever que todo homem tem de pensar livremente sobre qualquer assunto, sem peias nem restrições de espécie alguma. É a emancipação de todos os antigos prejuízos e preconceitos, de todos os métodos autoritários, de todas as tutelas de ordem moral e intelectual, de ordem filosófica e de ordem econômica. É a libertação na sua integralidade. É a luta do homem contra a fatalidade da natureza e contra os dogmas no espírito. O livre pensamento é o direito ao livre exame.5
No Brasil, nas primeiras décadas do século XX, o programa de anticlericais e livres-pensadores foi difundido não apenas nas páginas de O Livre Pensador ou na imprensa anarquista e operária. Expressando o processo de secularização pelo qual vinham passando os países europeus e americanos, o anticlericalismo também “existia disseminado no pensamento das elites políticas brasileiras nas primeiras décadas do século, quer ligado a uma versão mais radical de republicanismo, como no caso do movimento jacobino, quer relacionado a versões mais conservadoras, como a dos positivistas”.6 Enquanto cultura política, a aliança entre diferentes correntes políticas em torno do anticlericalismo
envolveu uma combinatória de forças, de táticas em espaços organizados, simultaneamente, por coerções e por contratos, e, estrategicamente, conferia maior unidade organizacional, uma rede mais ampla de apoio e de sociabilidade, além de revelar representações de mundo em que a ideia de reforma da sociedade foi apresentada como alternativa aos modelos existentes.7
Essa cultura política expressa o primeiro nível das afinidades eletivas estabelecidas entre diferentes sujeitos, que se caracteriza pela afinidade pura e simples ou parentesco espiritual, criando a possibilidade, embora não a necessidade, de uma convergência ativa. A transformação dessa potência em ato depende de condições históricas concretas, como mutações econômicas, relações de classes e categorias sociais, movimentos culturais e acontecimentos políticos.8 No caso dos setores que atuavam na militância anticlerical, que iam dos maçons aos sindicalistas revolucionários, passando por socialistas e espíritas, as afinidades se construíam por meio de alguns fatores gerais, sem que necessariamente houvesse a convergência em torno de um projeto de sociedade ou da organização de um movimento político orgânico.
O anticlericalismo
No final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, os conflitos vivenciados pela Igreja não se restringiram ao Brasil. Nos países católicos da Europa, que englobavam aproximadamente 45% da população do continente, “a fé recuou com especial rapidez no período, diante da ofensiva conjunta (citando uma queixa clerical francesa) do racionalismo da classe média e do socialismo dos professores das escolas”.9 O termo anticlericalismo, surgido na França em 1852, “se tornou um ponto central da política do centro e da esquerda francesas a partir de meados do século”.10 Como consequência, o anticlericalismo se tornou um problema da política dos países católicos,
porque a Igreja Católica Romana optara por uma rejeição total da ideologia da razão e do progresso, só podendo, portanto, ser identificada à direita política, e porque a luta contra a superstição e o obscurantismo, mais que dividir capitalistas e proletários, unia a burguesia e a classe trabalhadora”.11
Nos demais países da América Latina, o anticlericalismo também se manifestou desde o século XIX. Nas lutas pela independência as instituições católicas tinham se enfraquecido, na medida em que “os vínculos entre a coroa e a igreja haviam sido tão estreitos que queda da monarquia representou um sério golpe para o prestígio da Igreja em toda a América Espanhola”.12 No México, ao passo que sacerdotes se transformavam “em líderes revolucionários, a hierarquia católica fornecia financiamento efetivo aos conservadores, reagindo, assim, às reformas propostas, que incluíam abolição da Inquisição e dos privilégios clericais, fechamento dos conventos e confisco das propriedades da Igreja”.13 Para os liberais mexicanos, “nenhuma instituição simbolizava melhor o fracasso representado pela herança colonial que a Igreja Católica, permanecendo ela como uma entidade monopolizadora das terras produtivas e dotada de privilégios perante o Estado”.14 Na construção de um novo sistema política, os líderes “dos movimentos de independência procuraram uma legitimação moral para o que faziam e encontraram inspiração, não no pensamento político católico, mas na filosofia da era da razão”.15 Nesse processo de construção política, “os governos mais liberais já mostravam os primeiros sinais de anticlericalismo”.16
Essa luta anticlerical não significou um massivo abandono da Igreja ou de seus ritos. Mesmo nesse período de fortalecimento do anticlericalismo “a religião ainda continuava sendo a única linguagem para falar do cosmos, da natureza, da sociedade e da política”, na medida em que “a atração que uma linguagem ideológica puramente secular exercia sobre as massas era irrelevante”.17 Pode-se dizer que, em certa medida, as manifestações anticlericais foram uma resposta à manutenção, mesmo após as Revoluções Burguesas, da influência da religião sobre a sociedade e o Estado.
Enquanto fenômeno internacional, o anticlericalismo se deu de diversas formas, ou seja, em suas diferentes manifestações, ele poderia tanto defender o fim da instituição eclesiástica como a sua reforma, podendo inclusive associar-se à “construção de uma laicidade que buscou a convivência com a Igreja ou que postulou, pura e simplesmente, sua supressão”.18 O anticlericalismo pode se referir à crítica da Igreja enquanto instituição negando seu próprio direito de existência ou reconhecendo-o, mas apontando seus desvios. O anticlericalismo pode se expressar “em termos normativos, contestando a legitimidade das normas impostas pela instituição ou, então, reconhecendo-as, mas buscando limitá-las a uma esfera alheia à vida profana”.19 O anticlericalismo também pode se expressar em termos cognitivos, a partir da descrença em relação à fé e às formas de conhecimento da realidade derivados do catolicismo, ou em termos comportamentais, a partir da adoção deliberada de comportamentos contrários às normas católicas, em sociedades nas quais tais normas permanecem vigentes.
No Brasil, a implantação do regime republicano, a partir de 15 de novembro de 1889, trouxe consigo a ideia de separação entre Estado e Igreja. Como consequência, a Primeira República foi marcada por tensões e negociações, ainda que as autoridades eclesiásticas tenham procurado se adaptar aos limites impostos pelo novo regime. Por outro lado, ainda que tenha ocorrido uma pequena diminuição da população católica desde a Primeira República, essa religião foi predominante no Brasil ao longo do século XX.20 No processo de transição do Império para a República, a Igreja procurou aliar-se ao novo regime,
com o objetivo de barganhar sua legitimidade enquanto agente da Ordem e foi muito bem-sucedida em seu intento, ganhando paulatinamente seu espaço e conseguindo, a partir dele, sobrepor-se a seus principais adversários. A hierarquia católica, principalmente depois da república, partiu, então, não para o confronto com os novos governantes, e, sim, para a conciliação, ao mesmo tempo em que buscou consolidar a criação de uma elite católica.21
Com a nova constituição, promulgada em 24 de fevereiro de 1891, entre outros aspectos que dizem respeito à vida religiosa, definiu-se que todos os indivíduos e confissões religiosas poderiam exercer pública e livremente o seu culto e que os cemitérios teriam caráter secular e seriam administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendessem a moral pública e as leis. Por outro lado, nenhum culto ou igreja gozaria de subvenção oficial nem teria relações de dependência ou aliança com o Governo da União ou dos Estados. Nesse cenário, colocava-se para a Igreja a tarefa de definir uma “moldura organizacional própria em condições de garantir autonomia material financeira, institucional, doutrinária, capaz de respaldar quaisquer pretensões futuras de influência política”.22
Uma das metas mais urgentes para a Igreja Católica era reaver a parcela do patrimônio incorporado pelo poder público, durante o período imperial. Nesse sentido, para a Igreja, as duas primeiras décadas do regime republicano foram marcadas “por inúmeras pendências em torno da reapropriação de conventos, igrejas, residências, casas de misericórdia, sedes de irmandade e terras”.23 Por outro lado, como fator positivo para a Igreja Católica, a separação em relação ao Estado cancelava, na prática, todos os direitos de intervenção sobre os negócios eclesiásticos de que dispunha o poder central, entre os quais a criação de novas dioceses e paróquias e a fixação de normas e diretrizes para as atividades e serviços eclesiásticos. Essa maior autonomia, consequência da separação com o Estado,
não significou uma ruptura com os grupos dirigentes locais nem suscitou um redirecionamento das políticas e dos investimentos da Igreja com vistas a ampliar seu público fora do espaço da classe dirigente ou estabelecer alguma forma de atendimento às demandas dos setores sociais subalternos24.
Aa autoridades eclesiásticas uniram a formulação de doutrinas nacionalistas e a prática de atos cívicos às funções institucionalizadas da consagração do poder oligárquico. Passaram, dessa forma, a colaborar com campanhas de mobilização da juventude, com o trabalho de propaganda em defesa do alistamento militar e com a organização de “procissões cívicas, dando provas inequívocas de solidariedade às forças armadas através de pastorais e páscoas dedicadas aos militares”25. Essa organização eclesiástica encontrou meios de recuperar boa parte do terreno político e institucional que perdeu com a separação em relação ao Estado, “driblando assim aquelas medidas impostas pelo governo provisório no intuito de cercear sua influência política”26. Os conflitos entre Igreja e Estado, nesse sentido, devem “ser minimizados, uma vez que a Igreja se transformou em fonte de apoio ao regime republicano”27. Como balanço dos limites da separação entre Estado e Igreja, afirmava Everardo Dias, em conferência realizada em 1916:
A separação, a rigor, não é perfeita nem completa, em nosso país. Não tem sido poucas as vezes que o Executivo e mesmo o Legislativo saltaram por sobre decretos e leis, e principalmente por sobre esse da separação da Igreja e do Estado, já assistindo oficialmente a exéquias católicas a em lembrança de certos personagens, já prestando homenagens oficiais a personalidades do clero católico, já favorecendo com auxílios e subvenções institutos, asilos, liceus e até templos romanos28.
Com o advento da República, a sociedade brasileira também passou por um processo de secularização, no qual se chocaram perspectiva profanas e religiosas e, principalmente, no qual se lutou pela efetiva separação política entre Estado e Igreja. O jornal O Livre Pensador foi um espaço utilizado pelos anticlericais para levar a público suas ideias e tecer críticas à permanência da influência da Igreja sobre a sociedade brasileira.
O anticlericalismo de O Livre Pensador
O Livre Pensador, publicado inicialmente como suplemento semanal de A Lanterna, circulou entre 1903 e 1909 e entre 1914 e 1915. O jornal, que tinha Everardo Dias como proprietário e editor, se declarava “órgão dos anticlericais e, principalmente, dos livres-pensadores”.29 Constituindo-se em uma das principais publicações anticlericais da Primeira República, “deu origem ao aparecimento deste periódico a questão dos frades carmelitas no Rio de Janeiro e a necessidade, segundo afirmavam seus redatores, de manutenção na imprensa paulistana de um representante das ideias anticlericais”.30
Em 1903, o jornal A Lanterna se fundiu com aos jornais O Livre Pensador e L’Asino, sendo editado diariamente com o subtítulo “Diário da noite anticlerical-independente”. O jornal A Lanterna, editado em São Paulo, apareceu em março de 1901, sob a direção de Benjamin Motta, advogado e maçom, que “figurou nas primeiras convocações da reunião socialista de 1902, inclinando-se depois pelo anarquismo”.31 O jornal, em seu primeiro número, referia-se aos anticlericais como um grupo reduzido, embora “seu público não parece desprezível, por excessiva que possa ter sido a tiragem do órgão: 10.000 exemplares, que logo chegaram a 26.000, para depois declinar e se estabilizar em 6.000 números”.32 Sua publicação foi interrompida em 1904, reaparecendo em 1909, sob a direção de Edgard Leuenroth.
Em texto publicado como homenagem a Benjamim Mota em O Livre Pensador, afirmou-se que o jornal A Lanterna era um “vibrante grito de alarme contra as pretensões ultramontanas, combatendo o clericalismo com um vigor inexcedível”.33 Em janeiro de 1904, segundo o texto, “por problemas pessoais e profissionais entre os diretores de O Livre Pensador, Everardo Dias e Antonio Garcia Vieira, e o diretor de A Lanterna, Benjamin Mota, a sociedade foi dissolvida”.34 Everardo Dias e seu sócio publicaram um breve comunicado, sem maiores explicações, informando que “ficou estabelecido desfazer a fusão que existia entre os dois jornais”.35
O jornal abria espaço para uma variedade de tipos de textos, entre os quais artigos, informe de atividades políticas ou culturais, obras literárias e correspondências. Havia entre os textos publicados uma “grande quantidade de artigos de propaganda do livre-pensamento e do anticlericalismo, bem como seções para correspondentes de outras localidades”.36 O conteúdo político do jornal mostrava-se em diferentes textos, como em um que fazia menção ao terceiro ano do jornal, ocorrido em 1º de junho de 1906, onde se afirmava:
É preciso celebrar esta data com esplendor, dignamente, para mostrar aos nossos adversários, àqueles que com mal disfarçado rancor espreitam a nossa propaganda digna, sem tergiversações, sem temores, que nós, os livres-pensadores sabemos honrar a nossa magma obra, fruto de muito esforço, de muita coragem e perseverança.37
Em agosto do mesmo ano, também por ocasião da comemoração do terceiro aniversário de O Livre Pensador, em uma carta enviada pelo jornal Nova Era, de Taboleiro Grande, município do Rio Grande do Norte, afirmava-se:
É admirável a abnegação com que Everardo Dias se dedica a uma causa tão nobre como é essa guerra ao fanatismo religioso que só serve para separar a família humana, criar ódios, fomentar crimes como os que se desenrolaram nas fogueiras da Inquisição, nos massacres da Rússia e da Armênia.38
Pode-se perceber, por um lado, a tensão existente entre a militância anticlerical e a igreja no período e, por outro, a admiração que essa militância carregava acerca do papel cumprido pelo jornal e por seu editor. Essa percepção acerca da personalidade de Everardo Dias não se deve apenas à publicação do jornal, mas também ao esforço de publicação de outros materiais, especialmente livros e panfletos. Um dos esforços nesse sentido se materializou em 1907, na criação de uma editoria de nome Livre Pensador, que assim se expressava em seu primeiro documento público:
Atendendo às grandes e constantes necessidades da propaganda de um ideal, devido à guerra que lhe movem o Fanatismo e a Intolerância, sempre cegos e brutais, resolveu um Grupo de homens emancipados de todo e qualquer preconceito religioso, fundar uma Empresa que se dedique à difusão das obras de caráter essencialmente Científico e Racionalista, obras tão uteis e necessárias que se tornam imprescindíveis àqueles que almejam para a Humanidade um futuro mais amplo e equitativo, nos moldes da moderna democracia.39
Nesse manifesto de divulgação da nova editoria se reivindicava alguns dos principais elementos do anticlericalismo e do livre-pensamento, ou seja, por um lado, o combate ao fanatismo e à intolerância religiosa e, por outro, a defesa da racionalidade científica. No texto há certa ideia de progresso a ser alcançado pela humanidade, que se materializaria em uma “democracia moderna”. Para os anticlericais, “o catolicismo estaria contra a evolução, o progresso dos costumes, das instituições. Só com o fim do clericalismo a sociedade poderia entrar na rota do progresso, do desenvolvimento”.40 Por outro lado, a defesa da “moderna democracia” mostra, em certa medida, a estratégia política defendida por esse grupo anticlerical, propondo reformas sociais e não a transformação radical da sociedade capitalista.
Outra questão que permeia a imprensa anticlerical tem relação com a crítica de caráter moral feita ao clero, presente também em O Livre Pensador, que tecia numerosas críticas principalmente contra os padres, chamando-os de “homens sinistros de roupagem negra”.41 Entre outras questões, o jornal denunciava a hipocrisia a que estava envolta a atuação eclesiástica, afinal, segundo o jornal, “é obrigado o padre, não a ser casto, mas a fingi-lo; não a ser virtuoso, mas a aparentá-lo”.42 Uma das práticas religiosas mais criticadas pelos anticlericais era a confissão. Segundo texto publicado em O Livre Pensador, em agosto de 1915, “de todas as infâmias cometidas pelas religiões antigas e modernas, nenhuma se compara à confissão, estabelecida pela Igreja católica”.43 O problema maior se colocava, segundo o jornal, em relação à situação das mulheres, ingenuamente consideradas como seres que carregariam um pudor natural e inocente. Segundo o jornal,
O padre tem, devido ao seu estado de celibatário e à vida regalada, mais desenvolvida que outro qualquer homem a paixão da luxúria. Pelo confessionário sabe as tentações da penitente; conhece a que delinquiu e a que está mais próxima a delinquir. As probabilidades são de que este homem seduzirá essas mulheres ou, pelo menos, há de intentá-lo. Ele conhece os seus segredos; elas mesmas os confessaram; o pudor deixou de existir entre o confessor e a mulher. 44
O texto mostra, apesar de também expressar o machismo que permeava a sociedade na época, alguns dos principais aspectos da crítica anticlerical. Em primeiro lugar, também denunciava o fato de o padre apenas esconder sua castidade e seus desejos, aproveitando-se do ambiente discreto do confessionário para exercer seu poder sobre pessoas que o procuravam. Uma das manifestações disso passava pela possibilidade de abuso sexual a que estavam suscetíveis as mulheres, além de poderem ser seduzidas pelo padre. Em segundo lugar, o jornal denunciava o fato de o padre poder se intrometer na vida íntima das famílias, conhecendo ou mesmo se aproveitando de segredos da pessoa que se confessa ou mesmo de sua família.
O jornal também publicava notícias da atuação anticlerical em outros países, especialmente na Europa e nos demais países da América Latina, mostrando as atividades de diferentes associações anticlericais em países como Alemanha, Bélgica, França, Itália, entre outros.45 Em agosto de 1906, nas páginas de O Livre Pensador, publicava-se a convocatória para o Congresso Universal, realizado pela Federação Internacional do Livre Pensamento e organizado pelo Comitê Nacional Argentino, onde se podia ler:
Roga-se o concurso moral e material de todos os cidadãos liberais do país, das Associações democráticas, das Lojas Maçônicas, dos Centros de Ensino, de Estímulo e Cultura, do professorado e de todos quantos desejam aderir à celebração do Congresso Universal que deve reunir-se na cidade de Buenos Aires nos dias 21, 22 e 23 de agosto de 1906 e no qual estarão representados todos os centros liberais do mundo.
Este convite faz-se extensivo especialmente às agrupações análogas que estejam constituídas em todos os países americanos, que são, desgraçadamente, os mais influenciados pelo clericalismo.
É dever de solidariedade e harmonia contribuir com a mais resoluta decisão para o êxito desse magno Congresso por ser a primeira assembleia liberal que se celebra na América do Sul com o objetivo primordial de emancipar a alma americana do prejuízo e da mentira religiosa.46
Foram publicadas nas páginas de O Livre Pensador, também, as respostas da militância anticlerical ao chamado pelo congresso universal. Em um desses textos, afirmava-se:
O Brasil necessita mandar delegados especiais a esse Congresso; necessita de ser nele representado. Todas as Repúblicas o serão, todas. E aos livres-pensadores brasileiros, ou aqui domiciliados, compete olvidar os maiores esforços para que esta República também o seja. É necessário dar uma prova da mentalidade brasileira, de que aqui também se pensa.47
Os esforços de mobilização do anticlericalismo em diferentes países mostram o caráter internacional assumido por esse conjunto de ideias, como parte do processo de secularização, nos primeiros anos do século XX. Mostra também a preocupação dos responsáveis por O Livre Pensador em articular os militantes anticlericais atuantes no Brasil com as experiências de outros países. Essa é uma das possíveis razões para a convergência de temáticas e problemas levantados pelos anticlericais brasileiros, expresso nas páginas de O Livre Pensador.
Maçonaria e anticlericalismo
Uma das temáticas publicadas nas páginas de O Livre Pensador foi a relação entre anticlericalismo e Maçonaria. Essa discussão é relevante, por diferentes aspectos, um dos quais o vínculo maçônico de Everardo Dias, iniciado na Loja Filhos do Universo, na cidade de Aparecida do Monte, estado de São Paulo, em junho de 1904. Posteriormente, Everardo Dias, segundo o historiador maçônico José Castellani, filiou-se à Loja União Espanhola, na cidade de São Paulo, onde possuía muitos amigos.48 Em maio de 1908, ingressou na Loja Ordem e Progresso, onde viria a ocupar diferentes cargos administrativos. Em sua vida pública manteve relação com outros maçons, como Benjamin Motta, primeiro editor do jornal A Lanterna, Maurício de Lacerda, deputado defensor das lutas operárias na Primeira República, e Cristiano Cordeiro, delegado no congresso de fundação do Partido Comunista do Brasil (PCB).
Outro aspecto que demonstra a importância de discutir a relação entre Maçonaria e anticlericalismo se explica pelas tensões existentes entre os maçons e o clero católico, no Brasil e em outros países. Nesse embate entre as duas instituições, a imprensa anticlerical “fazia ecoar ideias que defendiam a Maçonaria das críticas feitas pela imprensa católica”, defendendo a Maçonaria como “uma associação de homens sábios e virtuosos, cujo objetivo era viver em igualdade, unidos pelos laços de estima, confiança e amizade, defensores da tolerância, fraternidade, igualdade e liberdade”.49 Segundo Everardo Dias, em conferência realizada em fevereiro de 1917,
a Maçonaria é uma comunidade composta de homens livres que têm por guia o progresso social da Humanidade, secundando os princípios do direito natural e da justiça: a sua divisa é a investigação da verdade, o estudo da moral e a prática da solidariedade. Em suma: a Maçonaria é uma corporação universal altamente filantrópica, filosófica, progressista e eminentemente política50.
Essa visão é expressa também nas páginas de O Livre Pensador, como, por exemplo, em 10 de fevereiro de 1909, com a publicação do texto sobre o Padre Euclydes, de Ribeirão Preto,
que não dispensa meios, sempre que se lhe depara ocasião, para deprimir e difamar a sublime Instituição Maçônica.
É a velha mania do clero, a mania estúpida de atribuir à Maçonaria crimes e infâmias, esquecendo-se, ou procurando esquecer, que isso é privilégio exclusivamente do clero51.
Poucos anos antes, outro texto defendia a Maçonaria diante de críticas do clero católico, afirmando:
Cada loja é uma praça forte erguida contra Roma.
A Maçonaria: eis o temor de Roma. É que o papa sente ainda a ponta da espada do maçom que o derrubou do trono temporal.
A obra da Maçonaria ficará incompleta enquanto não se derroque também o impostor do poder espiritual52.
No mesmo período em que o debate acerca da relação entre Maçonaria e Igreja era realizado publicamente nas páginas de O Livre Pensador, Everardo Dias discutiu o tema em conferência realizada em uma loja maçônica, em 1908. Everardo Dias afirma que “a Maçonaria respeita todas as religiões e, no entanto, combate todos os fanatismos”53. Segundo Everardo Dias, “o Maçom tem por fim essencial combater o fanatismo, o erro e a ignorância”.54 Everardo Dias afirma que “o Catolicismo não aceita a igualdade nem entre os próprios sectários, nem neste nem no outro mundo (...) onde há lugares separados para os grandes e pequenos”, sendo que “para averiguar a diferença entre pequenos e grandes não é o grau de fé que regula, mas as posições sociais e a maior ou menor quantidade de esmolas para as confrarias”.55 Everardo Dias firma também que o Catolicismo “ama a discórdia entre os povos, desde que lhe advenha proveito. Acima dos interesses sociais está o interesse da cúria ou do papa!”.56 Referindo-se ao enfrentamento com o clero, afirma:
A Maçonaria, que é o mais formidável adversário das tiranias, dos fanatismos, das intrujices, tem, forçosamente, que dar combate franco e decisivo ao Clericalismo que a insulta e difama desde os púlpitos das igrejas, pelos confessionários, pelos jornais, pelos livros e até na banca das escolas”.57
No final do século XIX, os principais acontecimentos que expressam a tensão entre Maçonaria e Igreja estão relacionados à chamada “Questão Religiosa”, cujo auge ocorreu nos anos 1872 e 1873, quando o padre José Luís de Almeida Martins, que era maçom, foi suspenso pelo bispo do Rio de Janeiro por ter participado como orador de uma festa comemorativa da promulgação da Lei do Ventre Livre organizada pelo Grande Oriente do Brasil. Em seu discurso, o padre “enalteceu a Maçonaria e o Grande Oriente do Brasil, pela obra realizada em prol da emancipação dos escravos no Brasil”.58 O ato de suspensão do padre Martins contribuiu “para mobilizar toda a organização maçônica que, através do Parlamento e da imprensa, desencadeou uma verdadeira luta contra os adversários da liberdade de pensamento”.59
O embate entre Igreja e Maçonaria envolveu inclusive o governo imperial, que, no auge da crise, ordenou a prisão dos bispos de Olinda, dom Vital Maria Oliveira, e do Pará, dom Antônio Macedo da Costa, pelo fato de exigirem “que as irmandades religiosas expulsassem os maçons de seus quadros e, como algumas destas se recusaram a tal medida, foram interditadas pelos bispos”.60 Como resposta, as irmandades apelaram ao governo imperial, que acatou o recurso. Os bispos se negaram a reconhecer a supremacia do poder secular do governo e, “diante da atitude dos bispos, expediu-se o mandado de prisão. D. Vital foi preso em janeiro e D. Macedo, em abril de 1874”.61
Nessa disputa, Igreja e Maçonaria mobilizaram templos, escolas, clubes literários e festas públicas, buscando sobrepor-se ao adversário. Para os maçons, quanto mais templos fossem fundados, mais conseguiriam “defender-se e contra-atacar a Igreja, fazendo seus discursos penetrarem no corpo social e na vida cotidiana”.62 Paralelo a isso, a Igreja intensificou o discurso que associava os maçons ao satanismo ou a imagens negativas. Nesse processo, “a luta maçônica contra o conservadorismo católico acabou por ganhar a simpatia dos segmentos liberais da sociedade, o que atraiu muitos desses homens para a iniciação”.63
Esses embates se inserem num processo conhecido como romanização pelo qual passou a Igreja, nos séculos XIX e XX, constituindo-se em ações reformadoras de bispos, padres e congregações religiosas com objetivo de moldar o catolicismo conforme o modelo romano.64 No Brasil, nesse processo de “europeização” do catolicismo, em que os bispos substituíram a aleatória formação clerical pelo seminário, “os sacramentos, a moralidade e a autoridade clerical suplantaram como principal eixo da vida da Igreja os rituais e organizações autônomos e de base laica”.65 Para Kenneth Serbin, a romanização seria “modernização conservadora” do catolicismo, afinal,
ao mesmo tempo que representou a reação contra a modernidade foi também seu produto e sua promotora. Assim como socialismo e o nacionalismo, o catolicismo procurou construir novas formas de comunidade em face da destruição dos laços tradicionais pelo capitalismo internacional. No processo, o papado, acentuadamente fortalecido, procurou criar a unidade da comunidade católica no mundo todo66.
A romanização, iniciada no pontificado de Pio IX (1846-1878), não é exclusiva ao catolicismo no Brasil, inserindo-se “num processo mais amplo de transformação do aparelho religioso católico em escala mundial”.67 Esse processo esteve marcado, entre outras coisas, pelo combate a “sociedades clandestinas que conspiravam contra a Igreja”.68 No pontificado de Pio IX levou-se a cabo uma política que condenava “o racionalismo, o socialismo, o comunismo, a Maçonaria, a separação entre a Igreja e o estado, o liberalismo, o programa e a civilização”.69 Em palestra proferida em 1916, Everardo Dias analisou o Syllabus Errorum, promulgado em 1864 por Pio IX, que, entre outras questões, afirmava que “os fieis devem odiar os livres-pensadores, filósofos, naturalistas, racionalistas, revolucionários e reformistas”, que “estão possuídos do demônio e serão castigados com penas eternas os invasores e usurpadores dos direitos e das propriedades da Igreja”, que “são abortos do Inferno o Socialismo, o Comunismo, as sociedade secretas e bíblicas e as associações católico-liberais” e que “em caso” de oposição entre as leis das duas potências, civil e católica, deve prevalecer o direito eclesiástico”.70
O papado de Leão XIII (1878-1903) deu seguimento às ações do seu antecessor, dentro de um “contexto marcado pelo fim dos Estados pontifícios e da Campanha pela Unificação Italiana, o que agravava ainda mais a situação da Maçonaria, que era identificada como uma das causadoras da usurpação dos Estados pontifícios”.71 Na encíclica Humanum genus, de 1884, Leão XIII constata que “a seita dos Maçons cresceu com uma velocidade inconcebível no curso de um século e meio, até que se tornou capaz, através de fraude ou audácia, de obter tal acesso em cada nível do Estado de modo a parecer quase a sua força governante”.72 O documento associa a Maçonaria à corrente naturalista, a qual defende que é “a natureza humana e a razão humana” que “deveria em todas as coisas ser senhora e guia”, ligando “muito pouco para os deveres para com Deus, ou os pervertem por opiniões errôneas e vagas”.73 Leão XIII afirma que para os maçons “está dentro da lei atacar com impunidade as próprias fundações da religião Católica, em palavra, em escritos e em ensinamentos”.74 No cenário político, o papa constata que os católicos têm
que lidar com um inimigo enganoso e habilidoso, que, gratificando os ouvidos do povo e dos príncipes, os tem enleado por falas macias e por adulação. Entrando nas boas graças dos governantes sob a alegação de amizade, os Maçons tem se esforçado para fazê-los seus aliados e poderosos auxiliadores para a destruição do nome Cristão; e para que eles possam mais fortemente pressioná-los, eles têm, com determinada calúnia, acusado a Igreja de maliciosamente contender com os governantes em assuntos que afetam a sua autoridade e soberano poder.75
Leão XIII parece estar se preparando para uma cruzada. O papa propõe uma reação por parte dos católicos, apresentado algumas tarefas contra expressões da modernidade, entre as quais a Maçonaria. Leão XIII afirma:
Nós rogamos e imploramos a vós, veneráveis irmãos, a juntar os vossos esforços com os Nossos, e esforçadamente lutar pela extirpação desta praga maligna, que está se esgueirando através das veias do corpo da política. Vós deveis defender a glória de Deus e a salvação do vosso próximo; e com o objetivo de vosso combate à vossa frente, nem coragem nem força irão faltar. Será por vossa prudência que julgareis por quais modos vós podeis melhor sobrepujar as dificuldades e obstáculos com os quais vos encontrardes. Mas, como pertence à autoridade de Nosso ofício que Nós mesmos apontemos algumas maneiras apropriadas de procedimento, Nós desejamos que o vosso primeiro ato seja arrancar a máscara da Maçonaria, e deixar que ela seja vista como realmente é; e por sermões e cartas pastorais instruir o povo quanto aos artifícios usado pelas sociedades deste tipo para seduzir os homens e persuadi-los a entrar em suas fileiras, e quanto à perversidade de suas ações e à maldade de seus atos.76
Não havia no interior da Maçonaria uma forma única de encarar a Questão Religiosa ou mesmo a relação com a Igreja. José Maria da Silva Paranhos, mais conhecido como Visconde do Rio Branco, Grão-Mestre do Grande Oriente do Brasil, afirmava haver uma especificidade da Maçonaria brasileira em relação aos seus congêneres europeus. Segundo ele, “se as lojas maçônicas europeias interferiam excessivamente nos aspectos ligados à religião e à política dos Estados, as lojas brasileiras se ocupavam precipuamente do aperfeiçoamento moral e intelectual do homem e de atos beneficentes”.77 Essa concepção, que destacava o caráter apolítico e beneficente da Maçonaria, fortalecia as posições regalistas, que se estruturavam a partir da noção de subordinação da Igreja ao Estado. Essas posições se chocavam com os setores liberais da Maçonaria, liderados por Saldanha Marinho, para quem “a liberdade de consciência era incompatível com o regime de união entre Igreja e Estado”.78
Esse é o pano de fundo dentro do qual se insere O Livre Pensador enquanto espaço de debate anticlerical que aglutinava ao seu redor, entre outros setores, alguns maçons. Essa relação entre anticlericalismo e maçonaria se manifestou em diferentes textos publicados no jornal, como em artigo de 5 de janeiro de 1904, assinado por Emilio Munhoz, que afirmava: “o maçom, por dever de seus princípios, é, além de tudo, anticlerical”.79 Para o autor, não havia relação possível entre o racionalismo defendido pela Maçonaria e o fanatismo religioso pregado pela Igreja.
O referido texto procura polemizar com algumas ações de setores maçônicos. Para Munhoz, o Grande Oriente do Brasil, “quando reformou a Constituição maçônica, poderia ter substituído a disposição do art. 1º, que dá ‘liberdade absoluta de consciência’ aos maçons, por outra que lhes vedasse a prática de qualquer devoção religiosa”. Segundo o autor, “se bem a maçonaria não é uma religião, é uma sociedade com caráter religioso em cujos rituais se encontram cerimônias para batismos, casamento e funerais”. Se a proibição houvesse se efetivado, a Maçonaria, segundo Munhoz,
teria arredado de si os hipócritas que chamados “a combater o erro, o fanatismo e a superstição” vão à igreja celebrar casamentos, batizar crianças e consentem que um indivíduo celibatário, indecoroso e vagabundo, seja possuidor dos segredos do lar por meio da confissão.80
Além da crítica ao clero e da condenação moral aos padres, Emilio Munhoz defende que a Maçonaria não permita a entrada de crentes na instituição. Segundo o autor,
se a maçonaria proibisse os seus membros que comungassem o credo de qualquer religião, não seria ridicularizada nem traída pelos hipócritas que a ela se filiam com o interesse de realizar suas aspirações importando-se pouco do não cumprimento dos deveres que assumiram.81
Embora a posição mais comum entre os anticlericais seja de combate ao clero e à Igreja, os maçons lidaram de uma forma diferente com essa questão, sendo comum inclusive a relação próxima entre as duas instituições. Nesse sentido, em relação ao conflito ocorrido nos anos 1870, pode-se considerá-lo datado, não sendo possível identificar “uma espécie de incompatibilidade natural entre católicos e maçons no Brasil”, na medida em que “os relatos acerca da maçonaria brasileira oitocentista são recheados de referências a padres-maçons que rendiam reverência a Jesus Cristo e ao Grande Arquiteto do Universo”.82 Por outro lado, em âmbito internacional, pode-se perceber que houve, de um lado, maçons “que se esforçaram para deixar bem claro que a Maçonaria não era sinônimo de limitação religiosa” e, de outro, maçons que “se deixaram levar pelo seu ódio contra a Igreja e a religião em geral”.83
Levando em conta os princípios que norteiam a Maçonaria, percebe-se uma indissociável relação com uma força sobrenatural criadora. Na Constituição de Anderson, documento em que se baseia a Maçonaria moderna, em sua redação de 1723, afirma-se que,
apesar de, nos tempos antigos, os Maçons estarem obrigados a praticar, em cada país, a religião local, tem-se como mais apropriado, hoje, não lhes impor senão a religião sobre a qual todos os homens estão de acordo, dando-lhes total liberdade com referência às suas próprias opiniões particulares. Esta consiste em serem homens bons e sinceros, homens honrados e justos, seja qual for a denominação ou crença particular que eles possam ter.84
Essa primeira redação do documento, ainda que não defenda claramente a necessidade de crença em uma divindade específica, pressupõe algum tipo de crença para a iniciação na Maçonaria. Em 1815, a redação foi modificada, passando a afirmar que um maçom,
de todos os homens, deve ser o que melhor compreende que Deus enxerga de maneira diferente do homem, pois o homem vê a aparência externa ao passo que Deus vê o coração. Seja qual for a religião de um homem, ou sua forma de adorar, ele não será excluído da Ordem, se acreditar no glorioso Arquiteto do Céu e da Terra e se praticar os sagrados deveres da moral.85
Nessa nova redação fica estabelecida de forma clara a necessidade da crença em uma entidade superior, ainda que esta possa ganhar diferentes nomes, ou o nome de diferentes deuses. Como consequência, “ao liberalismo e à tolerância religiosa da original compilação de Anderson, sucedia a crença impositiva e, agora sim, marcadamente teísta, na medida em que, além da existência de Deus, estabelece a sua ação providencial no mundo”.86 Portanto, ao exigir a exclusão dos crentes do seio da Maçonaria, Munhoz, no texto publicado em O Livre Pensador critica, ainda que sem o fazê-lo de forma aberta ou mesmo sem o percebê-lo, as próprias bases do pensamento maçônico moderno.
Contudo, essa crítica à presença de crentes no interior da Maçonaria não é a única opinião expressa nas páginas de O Livre Pensador. Em texto assinado por Guilherme Dias, de Guarapuava, estado do Paraná, publicado em 11 de maio de 1907, procura-se diferenciar o catolicismo dos movimentos religiosos que o antecederam, chegando-se a afirmar que “a história do catolicismo é a negação completa do cristianismo”. Segundo o autor, tendo em comum alguns elementos como a prática da virtude e a perseguição aos vícios, Maçonaria e Igreja se afastam justamente em função das ações do clero católico, que fraudando os intuitos de Cristo, teriam “confundido a abnegação, o desprendimento, a humildade e o perdão com a vaidade, a prepotência, o orgulho e o vindicar, fez desse símbolo de paz verdadeira arma de conquista e de terror”. Por outro lado, ainda que haja pontos em comum, o que a Maçonaria “não é, não pode nem deve ser, é uma associação católica como compreendem os falsos apóstolos de Cristo, porque seria isso sujar a sublimidade de seus desígnios e afrontar a pureza da doutrina do próprio Cristo”.87
Se de um lado Emílio Munhoz propunha que não se permitisse a iniciação de crentes na Maçonaria, do outro Guilherme Dias procura aproximar a filosofia desta ordem de um tipo de religião sem os vícios de que acusavam o clero. Essas duas posições perpassaram o jornal O Livre Pensador diferentes momentos de sua existência, sendo possível perceber, por um lado, “uma crítica completa ao pensamento religioso em geral e ao da Igreja Católica em particular” e, por outro, “uma comparação entre o cristianismo primitivo puro e autêntico e o catolicismo caracterizado como corrompido, nocivo e retrógrado”.88 Esse tipo de ambiguidade também se expressa na pluralidade de posições ideológicas dos anticlericais, inclusive do jornal O Livre Pensador.
Considerações finais
Os impulsionadores de O Livre Pensador se colocavam como parte da ampla frente que buscava aprofundar a experiência republicana, pressionando pelas reformas almejadas pelos setores populares. O processo de construção da República acabou por se constituir numa transformação por dentro das instituições, apenas acomodando novos setores políticos e sociais no controle do Estado, a partir da direção dos militares. Não houve a implantação de uma profunda ação política que garantisse uma ampliação de direitos sociais e políticos à maioria da população, em especial aos mais pobres.
Os textos publicados no jornal evidenciam que O Livre Pensador estava inserido na cultura política republicana que atraía amplos e díspares setores em torno da perspectiva de combate ao clero e à influência da Igreja na sociedade. Os Maçons, inclusive devido à perseguição sofrida desde o século XIX, se colocaram como parte desse processo. Embora houvesse articulações com anarquistas e socialistas no período, que apontavam para críticas mais densas da sociedade, aparecendo eventualmente em alguns dos textos, O Livre Pensador parecia incorporar essas ideias de forma fragmenta, expressando as fragilidades teóricas e políticas do anticlericalismo.
Os diversos setores que se alinham a uma perspectiva anticlerical – anarquistas, socialistas, positivistas, entre outros – construíam essa aproximação a partir de algumas afinidades. Os maçons, ao atuar tanto dentro das instituições como em algumas organizações operárias, se inseriram profundamente nesse processo de construção de ideias para compreender a situação política e social do período. O contexto das disputas políticas, em especial o acirramento das greves no final da década de 1910, mostraram uma nova dinâmica para as correntes políticas e, também, para a organizações dos setores operários, fazendo com que as lutas anticlericais, ainda que não desaparecem, ganhassem menos ênfase que discussões relacionadas à condição de vida dos trabalhadores.
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1 Eduardo Valladares, Anarquismo e anticlericalismo (São Paulo: Imaginário, 2000), 11.
2 Marcelo Ridenti, Brasilidade revolucionária: um século de cultura e política (São Paulo: Editora UNESP, 2010), 20.
3 “Verdades amargas”, O Livre Pensador I, no. 22, 13 de março de 1904, 1.
4 Ricardo Luiz Souza, Laicidade e anticlericalismo: argumentos e percursos (Santa Cruz do Sul: UNISC, 2012), 49.
5 Everardo Dias, Delenda Roma! Conferências anticlericais (Rio de Janeiro: Oficina Gráfica da Escola Profissional Maçônica José Bonifácio, 1921), 26.
6 Ângela de Castro Gomes, A invenção do trabalhismo (Rio de Janeiro: FGV, 2005), 101.
7 Eliane Moura Silva, “Entre religião e política: maçons, espíritas, anarquistas e socialistas no Brasil por meio dos jornais A Lanterna e O Livre Pensador”, in Espiritismo e religiões afro-brasileiras: história e ciências sociais, eds. Artur Cesar Isaia y Ivan Aparecido Manoel (São Paulo: UNESP, 2012), 101.
8 Michael Lowy, Redenção e utopia (Companhia das Letras, 1989), 17.
9 Eric Hobsbawm, Era dos Impérios (1875-1914) (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988), 368.
10 Hobsbawm, Era dos Impérios, 368.
11 Hobsbawm, Era dos Impérios, 368.
12 Leslie Bethell, “A Igreja e a independência da América Latina”, in: História da América Latina: da independência a 1870 (São Paulo: USP, 2009), vol. III, 269.
13 Ricardo Luiz Souza, Laicidade e anticlericalismo: argumentos e percursos (Santa Cruz do Sul: UNISC, 2012), 128-129.
14 Luiz Souza, Laicidade e anticlericalismo, 129.
15 Bethell, “A Igreja e a independência da América Latina”, vol. III, 269.
16 Bethell, “A Igreja e a independência da América Latina”, vol. III, 270.
17 Hobsbawm, Era dos Impérios, 366-367.
18 Luiz Souza, Laicidade e anticlericalismo, 7.
19 Luiz Souza, Laicidade e anticlericalismo, 7.
20 Artur Cesar Isaia, “Brasil: três projetos de identidade religiosa”, in Identidades brasileiras: composições e recomposições, orgs. : Cristina Carneiro Rodrigues, Tânia Regina de Luca y Valéria Guimarães (São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014), 179.
21 Luiz Souza, Laicidade e anticlericalismo, 187-188.
22 Sérgio Miceli, A elite eclesiástica brasileira (1890-1930) (São Paulo: Companhia das Letras, 2009), 24.
23 Miceli, A elite eclesiástica, 24.
24 Miceli, A elite eclesiástica, 26.
25 Miceli, A elite eclesiástica 28.
26 Miceli, A elite eclesiástica 28.
27 Luiz Souza, Laicidade e anticlericalismo, 188.
28 Everardo Dias, Semeando: palestras e conferências (Rio de Janeiro: Oficina Gráfica da Escola Profissional Maçônica José Bonifácio, 1921), 82.
29 O Livre Pensador II, no. 82, 19 de maio de 1905, 1.
30 Affonso A. de Freitas, “A Imprensa periódica de São Paulo desde seus primórdios em 1823 até 1914”, Revista do Inst. Hist. e Geo. de S. Paulo XIX (1915).
31 Boris Fausto, Trabalho urbano e conflito social (1890-1920) (São Paulo: Difel, 1983), 83.
32 Fausto, Trabalho urbano, 83.
33 “Benjamin Mota”, O Livre Pensador III, no. 96, 20 de agosto de 1905, 1.
34 Moura Silva, “Entre religião e política”, 94.
35 “Aos nossos amigos”, O Livre Pensador I, no. 15, 24 de janeiro de 1904, 2.
36 Moura Silva, “Entre religião e política”, 95.
37 “O 3º ano do Livre Pensador”, O Livre Pensador III, no. 125, 18 de abril de 1906, 3.
38 “O Nº especial e a imprensa”, O Livre Pensador IV, no. 139, 5 de agosto de 1906, 4.
39 “Grupo Editor L. P”, O Livre Pensador IV, no. 161, 11 de maio de 1907, 4.
40 Áurea Paz Pinheiro, As ciladas do inimigo: as tensões entre clericais e anticlericais no Piauí nas duas primeiras décadas do século XX (Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 2001), 99.
41 “As mães proletárias”, O Livre Pensador III, no. 94, 6 de agosto de 1905, 3.
42 “Proezas do clericalismo”, O Livre Pensador III, no. 93, 29 de julho de 1905, 2.
43 “A confissão”, O Livre Pensador III, no. 95, 13 de agosto de 1905, 2.
44 “A confissão”, O Livre Pensador III, no. 95, 13 de agosto de 1905, 2.
45 O Livre Pensador III, no. 102, 1 de outubro de 1905, 3.
46 O Livre Pensador IV, no. 139, 5 de agosto de 1906, 1.
47 “O Congresso de setembro”, O Livre Pensador IV, no. 135, 8 de julho de 1906, 1.
48 José Castellani, Ação secreta da maçonaria na política mundial (São Paulo: Landmark, 2001), 134.
49 Paz Pinheiro, As ciladas do inimigo, 118.
50 EDias, Semeando, 91.
51 “O padre Euclydes e a Maçonaria”, O Livre Pensador VI, no. 196, 10 de fevereiro de 1909, 1.
52 “As lojas americanas”, O Livre Pensador 41, 24 de julho de 1904, 1.
53 Dias, Semeando, 17.
54 Dias, Semeando, 18.
55 Dias, Semeando, 22.
56 Dias, Semeando, 23.
57 Dias, Semeando, 24.
58 Castellani, Ação secreta da maçonaria, 107.
59 Alexandre Mansur Barata, Luzes e sombras: a ação da maçonaria brasileira (1870-1910) (Campinas: CMU/Unicamp, 1999), 93.
60 Marco Morel y Françoise Jean de Oliveira Souza, O poder da maçonaria: a história de uma sociedade secreta no Brasil (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008), 159.
61 Barata, Luzes e sombras, 94.
62 Morel y Souza, O poder da maçonaria, 160.
63 Morel y Souza, O poder da maçonaria, 160.
64 Pedro Oliveira, Religião e dominação de classe: gênese, estrutura e função do catolicismo romanizado no Brasil (Petrópolis: Vozes, 1985), 283-284.
65 Kenneth Serbin, Padres, celibato e conflito social: uma história da Igreja católica no Brasil (São Paulo: Companhia das Letras, 2008), 79.
66 Serbin, Padres, celibato e conflito social, 81.
67 Oliveira, Religião e dominação de classe, 292.
68 José Antonio Ferrer Benimeli, La masonería (Madrid: Alianza, 2013), 95.
69 Barata, Luzes e sombras, 103.
70 Dias, Semeando, 72-73.
71 Barata, Luzes e sombras, 104.
72 Leão XIII, Humanum genus, 1884, 7.
73 Leão XIII, Humanum genus, 1884, 12.
74 Leão XIII, Humanum genus, 1884, 14.
75 Leão XIII, Humanum genus, 1884, 28.
76 Leão XIII, Humanum genus, 1884, 31.
77 Barata, Luzes e sombras, 96-97.
78 Barata, Luzes e sombras, 99.
79 Emilio Munhoz, “Peguemos em armes e... vão!”, O Livre Pensador I, no. 13, 5 de janeiro de 1904, 2.
80 Munhoz, “Peguemos em armes e... vão!”, 2.
81 Munhoz, “Peguemos em armes e... vão!”, 2.
82 Morel y Souza, O poder da maçonaria, 156.
83 Ferrer Benimeli, La masonería, 93.
84 José Castellani y Raimundo Rodrigues, Análise da Constituição de Anderson (Londrina: A Trolha, 1995), 37.
85 Castellani y Rodrigues, Análise, 53.
86 Castellani y Rodrigues, Análise, 54.
87 “A Maçonaria não é anticristã”, O Livre Pensador IV, no. 161, 11 de maio de 1907, 3.
88 Moura Silva, “Entre religião e política”, 99-100.